Literatura Cearense

Name:
Location: Fortaleza, Ceará, Brazil

Saturday, November 26, 2005

Padre Antônio Tomás

A morte do jangadeiro

Ao sopro do terral abrindo a vela,
Na esteira azul das águas arrastada,
Segue veloz a intrépida jangada
Entre os uivos do mar que se encapela.
Prudente, o jangadeiro se acautela
Contra os mil acidentes da jornada;
Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada
O vento, a chuva, os raios, a procela.
Súbito, um raio o prostra e, furioso,
Da jangada o despeja na água escura;
E, em brancos véus de espuma, o desditoso.
Envolve e traga a onda intumescida,
Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura
O mesmo mar que o pão lhe dera em vida.


Árvore solitária

“Há cem anos ou mais, surgindo da abertura
De um penhasco, nasceu franzino arbusto, e agora,
Gigante vegetal, às nuvens se alcandora,
Banhando à luz do sol a coma verde-escura.
Nenhuma clara fonte em seu redor murmura,
Nem a abelha, zumbindo, a agreste flor lhe explora,
Nem lhe soam na fronde, ao clarear da aurora,
Da passarada alegre os cantos de doçura.
Qual mísero galé ao solo acorrentado,
Exposto fatalmente aos golpes do machado,
Às injúrias do tempo e à sanha das procelas,
Pranteia o velho angico a sua ingrata sina,
Do âmago vertendo o choro da resina,
Por sobre o tronco rude, em bagas amarelas”.


O palhaço

Ontem, viu-se-lhe em casa a esposa morta
E a filhinha mais nova, tão doente!
Hoje, o empresário vai bater-lhe à porta,
Que a platéia o reclama, impaciente.
Ao palco, em breve surge... pouco importa
O seu pesar àquela estranha gente...
E ao som das ovações que os ares corta,
Trejeita, canta e ri, nervosamente.
Aos aplausos da turba, ele trabalha
Para encontrar no manto em que se embuça
A cruciante angústia que o retalha.
No entanto, a dor cruel mais se lhe aguça
E enquanto o lábio trêmulo gargalha,
Dentro do peito o coração soluça.


A meretriz

Essa mulher de face encaveirada
Que vês tremendo em ânsias de fadiga
Estendendo a quem passa a mão mirrada
Foi meretriz, antes de ser mendiga.
Em breve fugiu-lhe a sorte airada
A mocidade, a doce quadra amiga
E ela se viu pobre e desgraçada
Antes de tempo, a tanto o vício obriga.
Ontem, do gozo e da volúpia ardente
Fosse a quem fosse dava a qualquer hora
O seio branco e o lábio sorridente
Hoje, triste sina, embalde chora
Pedindo esmola àquela mesma gente
Que de seus beijos se fartara outrora.


PADRE ANTÔNIO THOMAZ SALES (1868-1941)
Nascido em Acaraú, foi o primeiro detentor do título de Príncipe dos Poetas. Reconhecidamente um dos maiores sonetistas de seu tempo, sua obra nunca foi reunida em livro, seguindo indicação de seu próprio testamento.

Tuesday, November 22, 2005

Virgílio Maia


Alvenaria

Sobre pedras se eleva este soneto,
em trabalhosa faina alevantado,
as linhas definidas no traçado
da perfeição do prumo e nível reto.
Dentre tantos eleito, põe-se ereto
rima por rima, embora recatado;
ao martelar do metro faz-se alado,
opondo ao som a luz deste quarteto.
Sobre andaime de verso e de ciência
necessário a erguer prova tão dura,
deixa o pedreiro, alçado, o rés-do-chão.
E sobranceiro ao mundo, àquela altura,
Vai concluir, com brava paciência,
A obra em que balança o coração.


Ilumiara


Quem pintou essas pedras no Sertão,
nessa tinta que nunca mais se apaga?
E para quem nosso ancestral pintava
brutas cenas de caça e aquela mão?
Tais secretos mistérios estarão
insondáveis nas cores dessas aras:
candelabros ou onças vermelhadas,
mais figuras que seguem em procissão.
Contou-me um dia uma mulher velhinha
que numa noite escura el a passou
se benzendo de medo pela Pedra.
E viu, jurou que viu, vinha sozinha,
que o enorme Gavião se desgarrou
da pintura, gritando feito a Fera.


Canudos não se rendeu


Foi ontem, claro dia de mais sol
(me haviam dito: tudo se findou:
que o futuro da gente se acabou,
não havendo sequer mais um farol).
Nas foi ontem um dia luminoso:
fui ao trabalho em alta andaimaria
e vislumbrei de lá, ao meio-dia,
sobrepujando um tempo desditoso,
eu pude ver, não se entregou ainda,
ainda peleja, a luta não é finda,
belo Arraial de Sempre onde se viu
ser o homem possível. Pois foi isto
que noutro dia me afirmou ter visto
um operário em construção civil.


Um bujão de gás

Prateado, bojudo, gordo, anão,
num escuro recanto relegado,
humilde é Prometeu acorrentado
por plástica corrente a um fogão.
Traz no bojo ancestral ignição
ofertada da chama no azulado,
na memória assoprando inesperado
espeleológico arco de um tição.
Reside nele a flama do carvão,
labareda eternal em combustão,
homenagem de fogo a quem ousou:
homem primevo, rude antepassado,
que acendendo o futuro, desgrenhado,
num gesto só o fogo arrebatou.


VIRGÍLIO MAIA (1954)
Nascido em Limoeiro do Norte. Advogado formado pela UFC. Dedicado à poesia e à etnografia. Ligado ao movimento armorial, seguindo as tradições nordestinas. Autor dos livros Palimpsesto (1992), España: doce ciudades y uma aldeã (1993), Via-Sacra Sertaneja (1996), Inscrição mural (1996), Palimpsesto & Outros Sonetos (1997), Estandartes da Tribo de Israel (2001), Cartilha (2002), Timbre (2002) e Recordel (2004), poesia; Álbum de iniciação à Heráldica das Marcas de Gado (1992, revisto e ampliado em 2004), etnografia. Da Academia Cearense de Letras, assim como seus irmãos Napoleão e Luciano.

Sunday, November 20, 2005

Luciano Maia


Ao irmão Nadim, morto

Os olhos descansando
sob as pálpebras da eternidade
mas um sorriso indisfarçável
rondando o corpo ausente
a nós abraçado.
Os olhos descansando
das miradas severas
e descansando os olhos
do generoso gesto
do carinho paternal
do mais generoso gesto
do carinho marginal.
Em teu adeus, irmão maior,
duas árvores perfiladas ao poente
eram a presença mais serena
e todas as árvores do mundo
pareciam guardar o teu sono
sob as pálpebras da eternidade.
Por um momento pensei
encontrar a Deus entre nós,
severo e risonho como tu, irmão maior.
Doeu-me como um lajedo
doeu-me como uma pena
a escuridão do jazigo
à que chegou o teu corpo
desterrado e só, amigo
meu irmão querido, morto.
Mas em volta a mata amena
saudou-nos com em outrora
e o meu olhar marejado
era de chuva e riacho
e a tua alma de açude
era em nós um grande abraço.
Adeus, Nadim, obrigado!


Lá fora

O Ceará é uma janela
pequena de onde contemplo
um mundo e seus fastios.
Aproximo-me e repouso as mãos
em sua soleira
e mais se abre a visão
do que lá fora está.
Meus olhos pousam numa possível
alegria, num eco de um sonho,
numa palavra estrangeira,
num país azul.
Retornam com o perfume
das ervas machucadas
já ressequidas, perpassando
a tristeza do vento.


Acqua et umbra

Sob as águas recém-detidas
à sombra da oiticica
a pequena rã coaxa
e vislumbra entre os fios
da água caída da estação celeste
um canto orquestrado de tempo
e trovão.
A lua de março
se entrevê no espelho singelo das poças
e neste instante as lonjuras
das águas primevas se inauguram
na memória primitiva
desta província anterior.


LUCIANO MAIA (1949)
Nascido em Limoeiro do Norte, é advogado formado na UFC e cônsul honorário da Romênia. É basicamente poeta e tradutor, especialmente do romeno. Autor, dentre outras obras, de Jaguaribe - memória das águas (1994), Seara (1994) Nau capitânia (1987) e Rostro hermoso (1997). Membro da Academia Cearense de Letras, assim como seus dois irmãos, Napoleão e Virgílio Maia.

Friday, November 18, 2005

Napoleão Maia Filho


A Ostra

Esconde-se na sua intimidade
a cintilação da pérola furtiva
e oculta o brilho e a fecundidade
de tudo que por ela se principia.
É campo, área e vazante
úmida, fértil e macia
com as águas dóceis e murmurantes
do túrgido rio que se anuncia.


A Vaga


No mar a onda brilhante
susta o tempo:
é aquele instante
do longo momento
interminável e só,
quando o movimento
se faz e se contrai.
Inverte-se o líquido
o mar é o infinito


NAPOLEÃO MAIA NUNES FILHO
Nascido em Limoeiro do Norte, é bacharel e mestre em Direito pela UFC. Foi Procurador do Estado do Ceará, Assessor da Presidência do Tribunal de Justiça, Juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará e Juiz Federal, exercendo, atualmente, o cargo de Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Foi professor da UFC e da UFPE. Autor de trabalhos na área jurídica e na poesia, tendo publicado, neste gênero, as obras A Concha do Impossível (1998), O Antigo Peregrino (2000), Poemas do Amor Demasiado (2001), Estações do Peregrino (2001), e Lua da Tarde (2002). É irmão dos poetas Luciano e Virgílio Maia, sendo todos três membros da Academia Cearense de Letras.

Thursday, November 17, 2005

Paula Nei

Fortaleza


Ao longe, em brancas praias embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares,
A Fortaleza — a loura desposada
Do sol dormita, à sombra dos palmares.
Loura de sol e branca de luares,
Como uma hóstia de luz cristalizada,
Entre verbenas e jardins plantada
Na brancura de místicos altares.
Lá canta em cada ramo um passarinho...
Há pipilos de amor em cada ninho,
Na solidão dos verdes matagais.
É minha terra, a terra de Iracema,
O decantado e esplêndido poema
De alegria e beleza universais.


Trança


Esta santa relíquia imaculada
Do teu saudoso amor, esta lembrança
Da vida, que fugiu arrebatada,
Ligeira, como um sonho de criança.
Nas noites do meu sono de bonança
Eu guardo, junto a mim, ah! noiva amada,
Enquanto minha vista não se cansa
De vê-la, de adorá-la, extasiada...
Com o fio desta trança tão escura,
Tão negra, sim, que até minha amargura
Invejara-lhe a cor, e tão macia,
Qual pétala de rosa, eu teço, à noite,
Da viração sentindo o brando açoite,
O epitáfio de minha campa fria.


De Viagem


Voa, minha alma, voa pelos ares
Como um trapo de nuvem flutuante!
Vai perdida, sozinha e soluçante,
Distende as tuas asas sobre os mares!
Leva contigo os lânguidos cismares
Que um dia acalentaste, delirante,
Como acalenta o vento roçagante
A copa verde-negra dos palmares.
Atira tudo isso aos pés de Deus!
Lá onde brilha a luz e estão os céus
E virgens mil coroadas de verbenas.
Isto que já brilhou como uma estrela,
A Deus, dirás, só pertenceu a ela,
Corpo de anjo, coração de hiena.


A Justiça


A Justiça de um povo generoso,
Pesando sobre a negra escravidão,
Esmagou-a de um modo glorioso,
Sufocando-a com a Lei da Abolição.
Esse passado tétrico, horroroso,
Da mais nefanda e torpe instituição,
Rolou no chão, no abismo pavoroso,
Assombrado com a luz da redenção.
Não mais dos homens os fatais horrores,
Não mais o vil zumbir das vergastadas,
Salpicando de sangue o chão e as flores!
Não mais escravos pelas esplanadas!
São todos livres! Não há mais senhores!
Foi-se a noite, só temos alvoradas.


Tu és Minha


Tu és minha, afinal. Enfim te vejo
Sobre meus braços lânguida, prostrada,
Enquanto em tua face descorada
Os lábios colo e sorvo-te num beijo.
Vibra em minha alma o lúbrico desejo
De assim gozar-te, a sós, abandonada,
De sentir o que sentes, minha amada,
De escutar-te do peito o doce arpejo.
Quando, entretanto, sinto que teu seio
Palpita, delirante, em doido anseio,
Como a luz que do sol à terra emana,
Eu digo dentro de mim: — "Se eu te manchara,
Se eu te manchara, flor, eu não te amara,
Ó branca espuma da beleza humana!"

Francisco de PAULA NEI (1858-1897)

Nascido em Aracati, viveu boa parte de sua vida no Rio de Janeiro, na boemia e em companhia da intelectualidade da sua época. Não deixou obra alguma publicada.

Caio Cid

Paudarco


Paudarco gigantesco! Pelos traços
lembra um deus milenar, rude e iracundo,
que detivesse, de repente, os passos
e ali ficasse contemplando o mundo.
Preso pela raiz ao chão profundo,

a fronde a farfalhar pelos espaços,
bebe a seiva nutriz no solo imundo,
mas para o céu é que levanta os braços.
Prometeu vegetal, brame, se estorce

e, por mais que proteste e se esforce,
não se libera da imobilidade.
Acorrentado ao pedestal da serra,

embalde é o sonho de fugir à terra,
o anseio de galgar a imensidade.


Carlos Cavalcanti, CAIO CID (1904-1972)
Nascido em Pacatuba, foi poeta, contista e cronista, tendo exercido intensa atividade de jornalista nos periódicos da capital cearense. Foi homenageado com um concurso de crônicas, organizado pelo Ideal Clube, que recebeu seu nome.

Natércia Campos


Discurso de posse na Academia Cearense de Letras
Sr. Presidente da Academia Cearense de Letras, Artur Eduardo Benevides. Sr. Secretário da Cultura e Desporto do Ceará, Nilton Melo Almeida, na pessoa de quem cumprimento os componentes da mesa, os presidentes de entidades, as autoridades, escritores, intelectuais presentes e meus ilustres colegas acadêmicos.
Minha mãe, Maria José Alcides Campos, em nome de quem cumprimento os amigos, as queridas colegas integrantes da Sociedade Amigas do Livro e familiares presentes.
Feliz estou com a presença de todos, dentre os quais destaco com carinho, os que vieram de longe. Minha irmã Marisa, a pintora Badida, como eu a chamava quando criança. Minhas filhas Clarissa, Emmanuela e minha neta Mariana. A querida tia Nilda e minhas primas Maria Helena e Maria Carolina. Suzana Martorelli, Joaquina e Zélia Fernandes Vieira, amigas-irmãs.
Destaco também com alegria a presença de meu irmão Cid, minhas filhas Caterina e Carolina, meu filho Rodrigo, minha nora Sílvia, meus genros Oliveira Júnior e Omar. Presentes estão meus netos Thiago José, Natércia Maria, Rafael José e Pedro.
Hoje, ao entrar nesta casa, voltei no tempo.
Década de 30! Aqui, neste patrimônio histórico, foi meu pai apresentado à minha mãe. Na sala grande da frente, funcionava a Secretaria dos Negócios do Interior e da Justiça do Ceará, onde minha mãe trabalhava. Meu pai fora nomeado para a mesma Secretaria. Ele costumava afirmar: “O Destino é o mais fértil dos ficcionistas, aquele capaz de todas as tramas e enredos”.
O encontro dos dois, nesse ambiente de trabalho, os fez caminharem juntos mais de meio século! Sua história de amor teve início na época em que se flertava e os descobrimentos entre os enamorados eram conquistas diárias, esperadas e sonhadas.
“O poder lírico do amor”, assim nos diz o mestre Câmara Cascudo, fez meu pai revelar-se em poemas até hoje inéditos. Só a minha mãe pertencem. Ela sempre me contou sobre o encontro dos dois: o salão da frente, minha filha, tinha portas abertas para a Igreja do Rosário, uma das mais antigas do Ceará e ao lado havia um jardim. Seu pai tinha paixão por livros e por cinema. No início do expediente, ele em pé, recostava-se no bureau a me contar sobre os filmes, naquele jeito tão dele, elegante, o cigarro fazendo parte dos gestos sugestivos na mão longa e expressiva. Quando nos casamos, ele me disse: “Se um dia, querida, nós tivermos uma filha, ela se chamará Natércia”.
Por isso, hoje meu desejo grande, ao transpor a porta desta casa, era transpor Tempo e Espaço.
Nesta casa me senti próxima ao meu pai, pois, na sala com seu nome, seus livros e fotografia, fui por ele recebida, com seu meio-sorriso acolhedor de boas-vindas.
Lembro-me de um amigo querido, o poeta baiano-árabe-Jorge Medauar - que me disse certa vez: “- Moreira Campos, seu pai, passou a mão pelos seus cabelos e esta é uma forma mágica de transmissão.”
Às vezes, quando me acerco do seu fusca verde, que hoje me pertence, por um brevíssimo instante acalenta-me a idéia de que nada mudou. Logo o avistarei vindo ao meu encontro com seu jeito tranqüilo, feliz pela surpresa de me ver, envolto no cheiro do fumo de seu cigarro: “sua maneira disfarçada de suspirar” - no dizer do poeta Mário Quintana. Mas o momento esfuma-se... Estranho este véu de invisibilidade que envolve nossos entes queridos quando eles se vão. No entanto, persistimos em vê-los com o olhar da memória. E é nesses momentos de evocação que eles, os que partiram, mais se aproximam de nós e quase, quase conseguimos transpor a barreira desta dimensão tão oculta e tão presente.
No início deste século 21, meu filho mais velho, meu Zé, faria 40 anos. A magia do tempo o alcançou, e ele é hoje, dos seis filhos, o meu caçula com 27 anos. Esta foi a idade escolhida pelo destino, para que sua sombra, desde então, acompanhasse os momentos do meu viver.
Escreveu Cervantes: “O louvor vale pela pessoa que o dá” e é assim que recebo os louvores feitos por meu amigo querido – Presidente desta Academia – o poeta, Artur Eduardo Benevides.
Suas palavras, agora proferidas, me levam a sentir quão precioso e imprescindível é ter amigos. Na travessia do tempo a sua poesia foi um longo pastoreio de palavras belas, leves e encantadas. Foram elas o liame que nos aproximou e irmanou com grave paciência, desde as reuniões literárias e amigas, realizadas no pequeno jardim da casa de meus pais, no Benfica.
Seguindo o ritual desta ilustre casa, recordarei o digno patrono da cadeira número seis, Antônio Pompeu de Sousa Brasil. Filho de Tomás Pompeu de Sousa Brasil, o Senador Pompeu, e de Felismina Carolina Filgueiras. Nasceu ele em Fortaleza, a 29 de março de 1851. Médico pela Faculdade do Rio de Janeiro. Preferiu, no entanto, levado por seus pendores para os assuntos industriais, dedicar-se inteiramente à montagem e direção de uma fábrica de tecidos, nesta Capital. Faleceu muito moço, aos 35 anos, em 26 de janeiro de 1886. Era pessoa de grande acatamento e de muita simplicidade de maneiras. Pai de Tomás Pompeu Sobrinho, titular, inicialmente da Cadeira de Nº 6, da qual era Patrono Fausto Barreto. Na reforma de 1930, escolheu como Patrono o próprio pai.
Não conheci Francisco Alves de Andrade e Castro, o titular que me precedeu na cadeira Nº 6, mas ao debruçar-me sobre sua história de vida, seus livros escritos, sua sensibilidade poética, ficou-me a singular saudade de não ter usufruído do seu convívio. Creio que seríamos amigos por várias razões, dentre elas seu agudo humanismo.
Afirmava Francisco Alves de Andrade e Castro: “Devo aos meus professores do Seminário, meus conhecimentos sociológicos, filosóficos e humanismo cristão”.
Nasceu ele em 21 de novembro de 1913, nos sertões de Mombaça, do Ceará, no Sítio Recreio, de chão duro e de solos vermelhos. Seus pais foram José Alves de Castro e Raimunda Paes de Castro. Seus primeiros estudos, o curso primário, fez em sua cidade juntamente com seu irmão, a quem tanto queria e admirava, Paes de Andrade. Saiu de sua terra para cursar o secundário no Seminário Diocesano de Fortaleza.
O interesse pela literatura ampliou-se nesses anos de estudos no velho Seminário da Prainha. Ainda seminarista, em hora dedicada à meditação, saiu em silêncio da sala e subiu à torre da Igreja do Seminário. Seu olhar pousou no Farol do Mucuripe e escreveu seu primeiro poema, aos 20 anos. Nosso poeta Artur Eduardo Benevides o incluiu na sua "Antologia de Poetas Bissextos do Ceará”.
No ano em que nasci, diplomou-se Francisco Alves de Andrade e Castro na Escola de Agronomia do Ceará. Foi ele o orador de sua turma, que teve como lema “Estudaremos o Nordeste”. Fiel a esta legenda, lembra nosso historiador Raimundo Girão, “ele realmente se dedicou ao estudo dos problemas nordestinos, dos quais, depois de Tomás Pompeu Sobrinho e José Guimarães Duque, se tornaria a grande autoridade”. Cientista e Humanista, formou-se também em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Ceará. Afirmou-se nele a ampla visão humanista.
Herdou Francisco Alves de Andrade e Castro dos seus avós, do clã dos Inhamuns, o amor à terra. Depois, a sua profunda vivência com os sofridos homens dos sertões, quando, demarcando terras, palmilhou estes chãos em contato com a problemática da vida regional, o fez tornar-se um dos cearenses que mais escreveu sobre o Nordeste.
Guiou-se esse homem de letras, cultura e humanismo telúrico, pelo pensamento e pela ação, no anseio do desenvolvimento por amplos caminhos. Estes o levaram, com dedicação e justiça, a procurar amenizar a vida do homem do campo.
Em 1942, casou-se Francisco Alves de Andrade e Castro. Sua mulher, nossa querida Mundinha, sempre se destacou por seu espírito de solidariedade, força de liderança e amor a todos os seus familiares e amigos. No seu livro, lançado em novembro de 2001, no Ideal Clube, com o título – “Antes que eu me esqueça”, ela registra seu mundo, vivido com respeito e dedicação, junto ao marido e seus quatro filhos: Raimundo Régis – agrônomo e professor universitário como foi seu pai, Tereza Cristina: a única filha do casal, formada em Letras e Pedagogia na Universidade Federal do Ceará. Pedro José e Paulo Alexandre, ambos médicos.
Francisco Alves de Andrade e Castro exerceu vários cargos e funções públicas, dentre os quais:
Diretor da Produção Animal da Secretaria de Viação e Obras Públicas do Ceará; Secretário da Agricultura do Ceará, em 1946; Delegado Federal do Ministério da Agricultura na década de 60, Chefe do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal do Ceará; Representante do Governo do Ceará no CODENO e, depois, na SUDENE; Chefe da Zona do Departamento de Terras e Colonização, da Secretaria de Agricultura do Ceará; Professor Catedrático de Zootecnia Especializada da Escola de Agronomia da Universidade Federal do Ceará.
Recebeu os títulos de Professor Emérito, da Universidade Federal do Ceará, e de Professor Honoris Causa, da Escola Superior de Agricultura de Mossoró, Rio Grande do Norte.
Foram-lhe concedidas a Medalha do Mérito Agronômico do Brasil, outorgada pela Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil e a Medalha Justiniano de Serpa, do Estado do Ceará.
Foi membro do Instituto do Ceará e da Sociedade Brasileira de Zootecnia Suas principais obras publicadas são: As Possibilidades de Desenvolvimento e Melhoria dos Recursos de Gado Bovino no Ceará em 1942, A Escola Rural e a Pecuária (1946), O Pioneiro do Folclore no Nordeste do Brasil (1949), estudo sobre Juvenal Galeno; Estudos de Zootecnia Regional (1949), Tomás Pompeu e seu Tempo (1954), A Pecuária e o Crédito no Polígono das Secas (1955), A Reforma Agrária no Polígono das Secas (1959), Cerâmica Utilitária de Cascavel (1959), Agronomia e Desenvolvimento do Nordeste (1960), O Presbítero e os Sertões (1976), Ildefonso Albano e outros Temas (1985) e Saga dos Sertões de Mombaça (1987).
Seu livro Agronomia e Humanismo, uma de suas obras principais no campo da ciência, conquistou o Prêmio Clóvis Beviláqua, da Universidade Federal do Ceará. São muitos os estudos que fez estampar em periódicos, mas podemos destacar “Como nasceu a indústria da oiticica no Ceará”, na revista Nordeste Econômico e Financeiro de 1948; a “Saudação a Guimarães Duque”, na Revista do Instituto do Ceará de 1953, bem como o prefácio que escreveu para a edição de 1965 das Lendas e Canções Populares de Juvenal Galeno. Organizou o livro “Renato Braga - In Memoriam (1967)”.
São de Francisco Alves de Andrade e Castro os versos: “In Aeternum”, feitos em homenagem ao seu mestre e amigo-irmão, 'Renato Braga, que certo dia a ele confessou: “- Chico Alves, quando eu morrer gostaria que plantassem uma árvore, sobre a terra onde estarei”.

In Aeternum
Quando eu morrer
e voltar ao seio da terra amiga,
não quero túmulo,
nem epitáfios em lousa fria...
Plantem uma árvore sobre o meu jazigo!
E que as cinzas do meu corpo
sirvam a suas raízes de alimento!
E tudo o que era sangue,
correndo pelas veias,
batendo nas artérias,
reviva em seiva!
Que a poeira dos sonhos desfeitos,
na aderência das lágrimas e humo,
forme solo fecundo
à exaltação da vida...
E homem que fui,
árvore que serei
da matéria vencida,
hei de crescer para o alto!
E buscando sempre o sol,
Bebendo a intensa luz,
Estenderei meus ramos,
Sorrindo para o azul infinito!
E todo o antigo amor,
ressurgindo das entranhas
do velho coração já morto,
subirá pelo tronco à fronde,
onde desabrocharão flores,
de onde penderão frutos...

Exalto, com respeito, sua memória. Reverencio o homem erudito, enfim, essa figura humana tão plena de amor por sua terra. Sua obra é referência fundamental a quem quiser conhecer as virtudes e lutas do homem nordestino. Foi um precioso tempo esse em que me debrucei sobre a obra Francisco Alves de Andrade e Castro, sobretudo por seu sentido humanista, a envolver, em um vínculo sagrado, homem e sertão.
E assim, peregrina pelos caminhos da alma, pareço escutar o eco das vozes, sentir as mãos amigas e o amor dos que me protegeram, do ninho ao vôo! São tantos! Desde a casa dos meus pais ao sobrado da rua dos Potiguaras Nº 10, dos meus avós maternos. Na casa deles, as noites chegavam para que eu cedo adormecesse e as manhãs surgiam para que meu espreguiçar despertasse a minha alegria de viver. E isso acontecia tão simplesmente, fazendo-me crer que havia de ser essa a razão dos dias e das noites existirem. Era a casa dos meus avós o meu regaço.
E então, os livros chegaram como mensageiros vindos de outras paragens encantatórias, com a missão de ampliarem meus sonhos. Sinto nas mãos e ainda aspiro o cheiro da minha velha Crestomatia – “Última corrida de touros em Salvaterra” de Rebelo da Silva. Meus livros tão manuseados! "Reinações de Narizinho” – "História do mundo para crianças”. Minha mãe sempre contou, que chorei inconsolável quando me deu a notícia da morte de Monteiro Lobato. Tinha eu, nessa época, 9 anos. Absorvi a beleza imorredoura dos contos encantados de Andersen, dos irmãos Grimm, de Perrault.
Quanta saudade da minha coleção de quase cem pequenos exemplares da Edição Melhoramentos. Das fábulas de Esopo e de La Fontaine, com ilustrações em bico de pena. Do Tesouro da Juventude e seu papel fino a lembrar suavidade da seda! Todos eles e os que vieram depois foram companheiros inseparáveis. Tive a ventura de ter uma biblioteca na casa de meus pais e toda a liberdade para ler o que desejasse. Tardes que marcaram essa época, vivi na casa de minha tia Nilda, onde protegida por sua aguda sensibilidade, lia e escutava música.
Os livros, com seus vários personagens e destinos, povoaram meu mundo de infindas sensações. Despertaram-me para a beleza, os mistérios, a peregrinação lunar, a mitologia engastada no esplendor das constelações, a grandeza ilimitada da natureza e a multiplicidade dos sentimentos.
Até hoje quando releio alguns dos meus livros, todos velhos e queridos amigos, volto no tempo. Esse regresso feito em silêncio me comove, pois cada vez que os visito são ainda melhores e mais nos entendemos. Todos são companhia sagrada. Soam como música dentro de minha alma. Já afirmava o genial Borges: “Uma forma de felicidade é a leitura”.
Daí o motivo de alegria, quando ingressei na Sociedade Amigas do Livro, pelas mãos de uma mulher, especial e querida, Nadir Papi de Saboya. Nesta entidade, atualmente presidida por Cybelle Valente Pontes, tenho a oportunidade de participar de palestras e debates literários. Fazer parte desta sociedade muito me honra.
Mas o primeiro Grémio Literário que participei, foi o do meu inesquecível, Ginásio 7 de Setembro, cujo o diretor, era o dinâmico educador, Dr. Edilson Brasil Soárez, que nos alertava sobre a importância da leitura na formação do jovem. Dona Nila Gomes de Soárez sua mulher, foi minha professora, amiga e conselheira. Hoje no Colégio 7 de Setembro, cujo o diretor é meu grande amigo, colega de classe, Ednilo Soárez, estuda meu neto muito amado, Rafael José.
Os livros novamente abriram caminhos e estes me levaram a trabalhar na Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, no setor de editoração, em seguida fui incumbida da coordenação do stand do escritor cearense, desde a primeira Feira do Livro. Hoje faço parte do Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural do Estado do Ceará, presidido pelo secretário de cultura, Nilton Almeida, meu amigo.
Foi, no entanto, muito depois que descobri o mundo mítico dos longínquos sertões-de-dentro, bem distante do meu sertão-de-fora, a Praia de Iracema, onde nasci.
Devo este meu deslumbramento ao meu tio e compadre querido, Hildebrando Espínola, jornalista, professor, sociólogo e bibliófilo.
Ele me pôs nas mãos o "Dicionário do Folclore Brasileiro", de Luís da Câmara Cascudo. Foi esse livro a minha bússola. Com ele segui como os antigos pastores da Mesopotâmia que se guiavam pelas estrelas e por elas sabiam dos caminhos da terra.
Meu amigo Diógenes da Cunha Lima – Presidente da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, define com sensibilidade e maestria esse sábio mestre: “Em verdade, ninguém escreveu mais e melhor sobre o Brasil e sobre os brasileiros do que Câmara Cascudo. Os seus estudos etnográficos são imprescindíveis para a compreensão do que é nosso. Penso que ele e Gilberto Freyre são duas faces da mesma moeda. Eles estudaram e revelaram o Brasil. Gilberto com maior visão sociológica e Cascudo com visão antropológica, de cultura popular. Fazem a verdadeira interpretação social. Gilberto parte do Regional para fixar o brasileiro no mundo (Casa Grande e Senzala). Cascudo parte do homem no Universo para fixar o brasileiro (Civilização e Cultura). As suas obras são paralelas, vezes convergentes e complementares uma da outra. Os dois descobriram o Brasil”.
Meu primeiro livro, de nome “Iluminuras”, foi a ele dedicado: “Para o Mestre Luís da Câmara Cascudo, minha magia e meu real.”
Enveredei em torno dos sociólogos, historiadores, antropólogos mestres incontestes do folclore brasileiro. Palmilhei “Os Sertões” de Euclides da Cunha; os "Capítulos da História Colonial", de Capistrano de Abreu; "Os Cantadores e Violeiros do Norte", de Leonardo Mota; a "Paisagem das secas" de Mauro Mota; e "Usos e Superstições Cearenses" de um dos maiores pesquisadores de nossa terra – Guilherme Studart. Fui em busca do genial sergipano, Sílvio Romero, com seus "Cantos e Contos Populares do Brasil"; pela "Pequena História do Ceará" do nosso Raimundo Girão; pelos "Peãs" do épico Gerardo Mello Mourão; pelas "Raízes do Brasil" de Sérgio Buarque de Holanda. Li "Guerreiros do Sol - o banditismo no Nordeste do Brasil" – livro sobre a sociologia do cangaço, do gentil-homem, meu amigo, Frederico Pernambucano de Mello, cujo prefácio escrito por Gilberto Freyre o consagra. Emocionei-me com o "Romance d’A Pedra do Reino" e o "Auto da Compadecida", clássicos, do maior artista contemporâneo em todas as artes – o heráldico Ariano Suassuna, amigo muito querido e a quem tanto admiro. Dele recebi recentemente uma iluminogravura e um soneto.
Amigo de meu pai foi Gustavo Barroso. Dos dois tenho uma fotografia, em conversa evocadora de alpendre, deitados em redes, em uma tarde chuvosa. Diz o meu poeta querido, Francisco Carvalho: "A chuva me restitui a infância perdida na correnteza dos dias". Acho que ambos naquela tarde tiveram uma restituição ímpar, um longo reencontro com os dias de sua meninice. Voltaram: às suas casas, lugares vividos, às árvores, aos viventes, sentindo o cheiro da terra molhada pela abençoada chuva.
Um dos livros de Gustavo Barroso que me fascinou por sua prosa- poética é o antológico “Terra de Sol”. Seu livro "Ao Som da Viola", editado em 1921, foi a primeira antologia folclórica publicada no Brasil. Este pequeno texto escrito por Câmara Cascudo diz da dimensão do escritor Gustavo Barroso:
"Foi um mestre incontestável do folclore brasileiro, valorizando-o em fase que ninguém percebia interesse e valia, enriquecendo-o com livros de notável erudição. Um estilo ágil e claro, de discreta elegância vocabular, trazia uma força de comunicabilidade admirável. Sua bibliografia é essencial para o folclore".
Foi novamente meu tio Hildebrando Espínola que me emprestou "A Caça nos Sertões de Seridó", de Oswaldo Lamartine de Faria. Ressaltou: "Leia, Natércia. Você vai gostar. O homem é um dos grandes em etnografia". Obedeci. Segui seu rastro. Seu aboio. Suas abelhas. Seus açudes. Seus arreios e vaqueiros. Suas histórias marcadas por um estilo inconfundível -seu ferro e sinal – trazem de volta os dias de antanho do sertão-velho, com seus preceitos e a integração total do homem à natureza.
Sobre Oswaldo Lamartine de Faria diz a nossa Rachel de Queiroz: "Acho que no Brasil, ninguém entende mais do sertão e do nordeste do que Oswaldo". No seu romance "Memorial de Maria Moura", agradece a ele na página das dedicatórias: "A inestimável ajuda de Oswaldo Lamartine de Faria".
E assim os livros, esses mensageiros vindos em revoadas de vários pontos cardeais, conseguiram tornar alado meu mundo interior. Finquei minhas raízes nas tradições populares. Foram tantos livros em migração, que por vezes, ingratamente, esqueço o nome dos mestres escritores. Perdoem-me os não citados.
Minha jornada pelos sertões-de-dentro tem sido fascinante. Por onde enveredo se alumiam os desvãos da minha alma. Sigo por atalhos, platôs, rios, caatingas, pastagens, vilas, caminhos em cruz, em busca das ocultas nascentes, e nelas sacio minha sede.
Tenho sedução por cheiro de mato, de terra, de gado, de café torrado em alguidar de barro – "café donzelo", de assistir ao repiquete de um rio, aboios soltos na hora do Ângelus, quando os sinos distantes da matriz tocam, nos campanários, as Trindades, e o sereno cai, trazendo seus malefícios. Percorro em silêncio uma casa de farinha, com sua boca de forno a lenha. Pareço, às vezes, escutar chocalhos e o canto de galos, a clarear manhãs de sol a coar-se pelas telhas. Vejo fiapos de névoa na risca das serras verdes, clarão de relâmpago, noite de lua e a fuga pelos céus da luminosa zelação, a estrela cadente, seguida do pedido: Deus te Guie. Ouço o baque de frutas espatifando-se no chão molhado, onde se vêem, nítidos, rastros de gente e bichos. Por vezes, escuto o canto da chuva em horas mortas, banhando uma velha casa de duas águas, equilibrada num cerro, cercada de alpendres escorados em colunas, onde o vento dia e noite entra solto a percorrer salas e quartos, trazendo as frias manhãs e a viração mormacenta das tardes, que penetram na noite e tangem o cheiro das velas bentas nos santuários. É quando, ao anoitecer, ao som das contas dos terços e ao embalo doce das redes a gemer nos armadores chegam as mansas conversas e sonhos.
Curioso é que este mundo não vivido acalento dentro de mim, como uma recordação antiga, eco de velhas histórias contadas à luz das lamparinas, sobre o sertão belo e trágico de distâncias infinitas.
Apoio-me na força poética de Nertan Macêdo: "Longínquo país, a morada dos nordestinos. Longas, silenciosas, adormecidas terras de lápis-lazúli. Assim o encontraram, há trezentos anos os nossos avós".
Sinto o encadeamento, um tear a unir fios, o entrelaçar de mundos paralelos: os descobertos pela imaginação, instigada e povoada por leituras e os da minha memória ancestral vinda da minha bisavó e avó portuguesas, do distante Minho, casadas com homens andejos, descobridores dos caminhos do mar e desbravadores de terras. Tais mulheres ficavam nas suas aldeias à mercê de Deus e da Virgem, das meizinhas, superstições e crendices, que davam alento à sua força interior. Tão iguais à minha bisavó e avó nordestinas com seu legado de luta neste sertão, que elas superavam: trabalhando, fiando, cozinhando, plantando, a criar filhos e afilhados, cercadas por um profundo misticismo de rezas e agouros. Estes dois mundos avoengos são como as estrelas extintas que continuam a enviar seu rastro de luz através do tempo.
No entanto, foi na terceira casa, onde mais tarde pousei a esperar meus seis filhos, que aconteceu o mais belo aprendizado. Com eles aprendi a beleza da partilha. As responsabilidades, ponderações, dúvidas, zelos e desvelos criaram alento. Abrandou-se em mim o egoísmo. Aprendi que mãe e filho possuem liberdade de trocarem os títulos, conforme as situações vividas. Todos os seis com suas provisões de doçuras e durezas e suas profundas diferenças: Caterina, José Thomé, Clarissa, Rodrigo, Emmanuela e Carolina ampliaram a minha vida em infinitas vidas. Dizia Olavo Bilac: Há numa vida humana cem mil vidas!...
Certa vez li e guardei este pensamento do mestre Guimarães Rosa: "A vida inventa. A gente principia as coisas no não saber porque, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada."
Lembro-me que no ano de 1987 escrevi minha primeira carta para o poeta Jorge Medauar. Pedia sua opinião de crítico literário, sobre meus primeiros contos, todos ainda inéditos. Não me identifiquei. Sua resposta muito me incentivou. Ele escreveu: "Envie-me suas histórias. Quero publicá-las nos suplementos literários aqui de São Paulo. Seu estilo é nódoa braba de caju. Aí na sua terra, procure o mestre do conto, Moreira Campos". Encantou-me a coincidência. Respondi a Medauar, revelando ser filha do mestre Moreira Campos e desde então, assim "temperada", de surpresas, sentimentos e cumplicidades, permanece até hoje a nossa correspondência. Um dia quem sabe resolveremos publicá-la.
Chego hoje a esta casa – a Academia Cearense de Letras – a mais antiga de todas as academias culturais no país, emocionada e feliz. Sempre me causam admiração as pessoas que planejaram seus passos, suas diretrizes e a vida permitiu que assim pudessem ser e acontecer. Comparo, alguém já fez isso, a um teatro: Abre-se o pano, vai ter início a peça. Alguns sabem e agem como se tivessem feito antes um longo ensaio geral, e outros não, a vida vai acontecendo com suas circunstâncias, arbitrariedades e mutações. Faço parte destes últimos.
Daí a vida, assim acontecendo sem maiores empenhos e planejamentos, traz com ela momentos como este, de felicidade.
Recebi um cartão de um amigo, o escritor João Soares Neto, que diz esta verdade: “- Natércia, engraçado. O vestibular da vida a aprova. E, de prova provada, você é acadêmica. Com a alegria do João”.
Hoje sei que a minha vida tão incrustada de aprendizados simples foi regida por minha boa estrela, a da sorte. Desde que nasci – na hora aberta do meio-dia – fui por ela aquinhoada. Sempre espero que alguma coisa de bom esteja prestes a me acontecer. É uma sensação leve, como o fremir das asas de uma borboleta... mas palpita dentro da minha alma este porvir. Valho-me do poeta Artur Eduardo Benevides: "Percebo: nada fiz de extraordinário além de exercitar-me na esperança."Por isso minha emoção quando hoje à noite transpus a soleira desta Academia Cearense de Letras, cujas paredes ouviram sobre meus pais e seus sonhos. "O rumor antigo conta", afirmava Camões.
Senhores acadêmicos, amigos queridos que me trouxeram a esta casa para mais próximos compartilharmos nossas vidas e amor ao livro. Agradeço a todos a unanimidade do bem-querer. Esta alegria tão minha se transforma em dupla alegria pela partilha.
Termino estas palavras com a poesia de um amigo ausente, mas tão presente em sua amizade, Sânzio de Azevedo:

"Há momentos na vida que compensam
a grande, imensa turba dos momentos
de angústia e de agonia.
São clareiras de luz na selva escura,
frinchas abertas na aridez dos muros.
- Há momentos que valem toda a vida..."
E este, é um deles, meu pai.

Obrigada.
Natércia Campos.
(28 de fevereiro de 2002).
NATÉRCIA CAMPOS (1938-2004)
Nascida em Fortaleza, era filha do escritor Moreira Campos. Foi romancista e contista, autora dos livros A Noite das Fogueiras, história; Por Terra de Camões e Cervantes e Caminho das Águas, viagem; Iluminuras (1998), contos, vencedor do Prêmio Nestlé de Literatura; e A Casa (2002), romance, sua obra mais genial. Grande conhecedora do folclore e das tradições nordestinas.

Airton Monte


Ave noturna

– Seu doutor, o álcool comeu meu juízo. Daí cortei o pulso a gilete, engoli caco de vidro, bebi veneno de cobra e o veneno roeu minhas palavras. Desde então fiquei mudo, com medo das pessoas. Como falar com as pessoas? Como fazê-las entender meu mundo partido em dois, três, sei lá quantos pedaços? Não, eu não estou delirando agora. Consigo sentir-me por dentro de mim, domino meu próprio corpo. Sou eu quem fala agora. Não os outros que sobrevivem por baixo de minha pele.
– Seu doutor, me dê um cigarro, me faça carinho na cabeça como minha velha mãe fazia. Sim, agora eu me lembro como a casa era escura. De como o cheiro de mato verde espalhava-se de fora para dentro da casa nas tardes de sábado. Meu pai montava um cavalo preto e suas esporas de prata tilintavam. Eu desenhava na parede do porão figuras mágicas, meio gente, meio bicho, sempre com os dentes arreganhados. De noite elas saltavam das paredes e me mordiam os braços, as pernas, me puxavam da rede, não me deixavam dormir.
– Seu doutor, vamos brincar de ciranda? A vida não é uma ciranda? Se o senhor não sabe disso é porque está louco também. Quem somos, os loucos? Diante de vocês, separados de vocês pela tênue linha, duvido quem arrisque o salto. Nossos sonhos. Quem se importa com nossos sonhos? Quem nos penetra até o fundo do poço sem medo de não voltar? Quem?
– Seu doutor, o caso é simples. Me dê meu remédio que eu quero dormir. A porta está sempre fechada e permanecerá fechada entre nós. Qual de mim estará falando agora? Qual de você estará me ouvindo? Sou eu não sendo eu e minhas palavras voam soltas no ar. Enquanto isso eu permaneço preso como alguém que amarra uma pedra no pescoço e salta do alto de uma ponte. Lá embaixo, onde a água é mais escura, mais fria, mais suja, ele tenta voltar, mas os pulmões estouram e a morte é a única companheira.
– Seu doutor, me dê sua mão que eles vêm vindo de todos os lados. Meu nome é não ter nome. E o medo é um animal esquisito, gelado, com braços de polvo. Caminho em torno de você e o observo: a veste branca, a caneta entre os dedos como uma cobra. Do lado de fora, encostado à porta, o enfermeiro é uma estátua a ouvir. Por que você não o chama? Por que você não ordena que ele enfie-me no braço ou na bunda esta maldita seringa? Esse é o seu trabalho, doutor. O meu é lhe dar trabalho, esgotar sua paciência, acabar com seu fim de semana.
– Seu doutor, por que não morro? É tão difícil morrer. E se eu lambuzasse seu rosto com merda? O que você faria, doutor? E se eu xingasse sua doce mãezinha? O que você faria, doutor? É fácil ter medo quando o medo ajuda a viver. Junte o medo com o ódio e você terá uma bela receita de sobrevivência. Pelo menos para gente como nós, que vive num espaço vazio, sem raízes, como se pudesse existir uma árvore solta no espaço descrevendo sempre eternamente a mesma órbita, inútil órbita.
– Seu doutor, não se avexe. Mal comecei a falar. Si você reparar bem, verá que eu danço como se falasse com o corpo inteiro. Quer entrar na dança também? Os cães estão uivando pra lua. Mas a lua está longe demais para ouvi-los. Há sangue nos meus dedos. Meus olhos estão furados como os olhos de uma boneca. Amarraram cordéis em nossos membros. Não posso mover- me para muito longe nem para muito perto. Para longe deles, para perto de vocês. Já observou como as pedras jogadas às margens do rio são tristes, doutor? Sou uma dessas pedras, doutor. O tempo vai me cobrindo de tempo, lodo, tempo.
– Bobagem, doutor, esse sua mania de tentar me olhar através de mim como se eu fosse um espelho. Às vezes, tenho a impressão de que você está falando só com a minha roupa. Você se esconde por trás dos óculos como o avestruz enterra a cabeça na areia. Estamos um diante do outro e nada podemos fazer ou falar. As muralhas estão erguidas. As mãos não empunham martelos para derrubá-las.
– Que nada, doutor. Todos esses livros ao seu redor lhe fazem ficar pequeno como o diabo. Já não consigo suportá-lo, doutor. Somos inimigos. Só conseguimos nos olhar assim como estamos agora: você de um lado e eu do outro. Entre nós as muralhas.
Antônio AIRTON Machado MONTE (1949)
Médico formado na Universidade Federal do Ceará, é contista, dramaturgo, poeta e cronista. Assina, há mais de dez anos, uma coluna diária no jornal O Povo, com a qual ocupa o lugar de maior destaque na crônica do Ceará, posto já ocupado por nomes como João Brígido, Caio Cid, Milton Dias e Rogaciano Leite Filho. Publicou os livros Memórias de Botequim, poesia; O Grande Pânico (1979), Homem Não Chora (1981) e Alba Sangüínea (1983), contos; e Moça com Flor na Boca (2004), crônicas. Participou do Grupo Siriará e da memorável revista O Saco.

Quintino Cunha

Encontro das Águas


Vê bem, Maria aqui se cruzam: este
É o Rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
como as saudades com as recordações.
Vê como se separam duas águas,
Que se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.
É um simulacro só, que as águas donas
D'esta região não seguem o curso adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos rios do Universo;
Para o velho Amazonas, Soberano
Que, no solo brasílio, tem o Paço;
Para o Amazonas, que nasceu humano,
Porque afinal é filho de um abraço!
Olha esta água, que é negra como tinta.
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.
Aquela outra parece amarelaça,
Muito, no entanto é também limpa, engana:
É direito a virtude quando passa
Pela flexível porta da choupana.
Que profundeza extraordinária, imensa,
Que profundeza, mais que desconforme!
Este navio é uma estrela, suspensa
Neste céu d'água, brutalmente enorme.
Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!...



Comunhão da Serra


Ontem, à noite, eu vi a minha Serra,
Como uma virgem, trêmula, contrita,
Recebendo de Deus, daqui da terra,
Uma hóstia do Céu, hóstia bendita.
Como foi, para vê-la assim? De neves
Era o véu transparente, que a cobria,
Vendo-se aqui e ali negros tons leves,
Do negro que do verde aparecia.
Tons negros, talvez restos, que os comparo,
De alguma nuvem torva, esfacelada
Por Deus, que só queria o Céu bem claro,
Porque ia dar a hóstia consagrada!
o cafeeiral, que rebentava em flores,
A grinalda na fronte lhe brotava;
E o frio, rebento dos temores,
No seu intimo, o frio rebentava!
Assim a Natureza era o sacrário,
De onde Deus dava a comunhão radiosa
À Serra! E era o Céu o grande hostiário
E era a lua, a hóstia luminosa.
E digam que eu não vi a minha Serra,
Como uma virgem, de grinalda e véu,
Recebendo de Deus, daqui da terra,
A hóstia luminosa lá do Céu!


Rui Morto

Cerebração complexa e o primeiro
dos grandes homens nacionais em tudo.
Continente a viver do conteúdo
de si mesmo, na Pátria e no estrangeiro.
De virtudes, um másculo pioneiro;
da nossa Liberdade, eterno escudo;
deram-lhe tudo, menos sobretudo,
a direção do povo brasileiro!
Vivo, não fora a tanto necessário...
Morto, é tão grande, é tão extraordinário,
que encontra, em cada Estrela, um cemitério!
De onde passo a ilagir, um tanto aflito:
ou o Rui foi menos do que se tem dito,
ou este nosso Brasil é um caso sério...

Nota:
soneto feito de improviso,
numa mesa do bar Rotisserie,
em Fortaleza,
a pedido de Leonardo Mota,
quando da morte de Rui Barbosa.
QUINTINO CUNHA (1875-1943)
Nascido em Itapajé, bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Ceará, em 1909, tendo sido Deputado Estadual (1913-14). Seu conhecido bom humor fez com que ficasse famoso como titular de anedotas memoráveis. Membro da Academia Cearense de Letras.

José Albano



Soneto

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.
Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas. tão pouco dura;
E ainda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.
Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia,
E só com saudades me atormento;
Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.


Prece


Bom Jesus, amador das almas puras
Bom Jesus, amador das almas mansas,
De ti vêm as serenas esperanças,
De ti vêm as angélicas doçuras.
Em toda parte vejo que procuras
O pecador ingrato e não descansas,
Para lhe dar as bem-aventuranças
Que os espíritos gozam nas alturas.
A mim, pois, que de mágoa desatino
E, noite e dia, em lágrimas me banho,
Vem abrandar o meu cruel destino,
E terminado este degredo estranho,
Tem compaixão de mim, pastor divino,
Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!



JOSÉ ALBANO (1882-1923)
Poeta e diplomata, passou a maior parte da vida longe do Ceará, ou estudando na Europa, ou como membro do Corpo Diplomático. Sua obra foi reunida e publicada por Manuel Bandeira, em 1948, e por Braga Montenegro, em 1966. Patrono da cadeira n° 39 da Academia Brasileira de Filologia.

Otacílio Colares

Unicamente


Amor, desperta... Há um luar, lá fora,
por tal forma tranqüilo e derramado
que é crime adormecer assim, agora,
podendo estar-se, a dois, inda acordado.
Pensando bem, o sono me apavora
pelo que tem da morte assemelhado.
Vamos fluir da vida a cada hora
— olhar no olhar, silentes, lado a lado.
A lua é irmã, a lua é casta e pura.
Façamos dela a doce confidente
deste amor que é doença e não tem cura.
Quando o sol sobreviver, inconseqüente,
fechemos a janela e a alcova escura
será só de nós dois, unicamente...



Amigos


Amigos valham os bons, poucos que sejam, que
nisto pouco importa a quantidade, pois quase
sempre é de infidelidade
o tom daqueles que demais cortejam.
Amigos versos fácil não bafejam,
pois sabem que o que conta é qualidade e na
alma infundem só sinceridade, quando de
alguém a face acaso beijam.
Amigos quer-se-os como os vinhos raros - sutis
no odor, no paladar, discretos, quanto mais
simples, tanto mais amados.
E de assim serem poucos, são tão caros que,
quais doces pecados, e secretos, são no íntimo
do peito conservados.



OTACÍLIO COLARES (1918-1988)
Nascido em Fortaleza, bacharelou-se em Direito, excercendo, porém, a atividade jornalística. Sua obra poética esta em grande parte esparsa, pois publicou apenas Poesias (1947) e O Jogral Impenitente (1965). Foi, também, ensaísta. Membro do Grupo Clã e da Academia Cearense de Letras.