Airton Monte
Ave noturna
– Seu doutor, o álcool comeu meu juízo. Daí cortei o pulso a gilete, engoli caco de vidro, bebi veneno de cobra e o veneno roeu minhas palavras. Desde então fiquei mudo, com medo das pessoas. Como falar com as pessoas? Como fazê-las entender meu mundo partido em dois, três, sei lá quantos pedaços? Não, eu não estou delirando agora. Consigo sentir-me por dentro de mim, domino meu próprio corpo. Sou eu quem fala agora. Não os outros que sobrevivem por baixo de minha pele.
– Seu doutor, me dê um cigarro, me faça carinho na cabeça como minha velha mãe fazia. Sim, agora eu me lembro como a casa era escura. De como o cheiro de mato verde espalhava-se de fora para dentro da casa nas tardes de sábado. Meu pai montava um cavalo preto e suas esporas de prata tilintavam. Eu desenhava na parede do porão figuras mágicas, meio gente, meio bicho, sempre com os dentes arreganhados. De noite elas saltavam das paredes e me mordiam os braços, as pernas, me puxavam da rede, não me deixavam dormir.
– Seu doutor, vamos brincar de ciranda? A vida não é uma ciranda? Se o senhor não sabe disso é porque está louco também. Quem somos, os loucos? Diante de vocês, separados de vocês pela tênue linha, duvido quem arrisque o salto. Nossos sonhos. Quem se importa com nossos sonhos? Quem nos penetra até o fundo do poço sem medo de não voltar? Quem?
– Seu doutor, o caso é simples. Me dê meu remédio que eu quero dormir. A porta está sempre fechada e permanecerá fechada entre nós. Qual de mim estará falando agora? Qual de você estará me ouvindo? Sou eu não sendo eu e minhas palavras voam soltas no ar. Enquanto isso eu permaneço preso como alguém que amarra uma pedra no pescoço e salta do alto de uma ponte. Lá embaixo, onde a água é mais escura, mais fria, mais suja, ele tenta voltar, mas os pulmões estouram e a morte é a única companheira.
– Seu doutor, me dê sua mão que eles vêm vindo de todos os lados. Meu nome é não ter nome. E o medo é um animal esquisito, gelado, com braços de polvo. Caminho em torno de você e o observo: a veste branca, a caneta entre os dedos como uma cobra. Do lado de fora, encostado à porta, o enfermeiro é uma estátua a ouvir. Por que você não o chama? Por que você não ordena que ele enfie-me no braço ou na bunda esta maldita seringa? Esse é o seu trabalho, doutor. O meu é lhe dar trabalho, esgotar sua paciência, acabar com seu fim de semana.
– Seu doutor, por que não morro? É tão difícil morrer. E se eu lambuzasse seu rosto com merda? O que você faria, doutor? E se eu xingasse sua doce mãezinha? O que você faria, doutor? É fácil ter medo quando o medo ajuda a viver. Junte o medo com o ódio e você terá uma bela receita de sobrevivência. Pelo menos para gente como nós, que vive num espaço vazio, sem raízes, como se pudesse existir uma árvore solta no espaço descrevendo sempre eternamente a mesma órbita, inútil órbita.
– Seu doutor, não se avexe. Mal comecei a falar. Si você reparar bem, verá que eu danço como se falasse com o corpo inteiro. Quer entrar na dança também? Os cães estão uivando pra lua. Mas a lua está longe demais para ouvi-los. Há sangue nos meus dedos. Meus olhos estão furados como os olhos de uma boneca. Amarraram cordéis em nossos membros. Não posso mover- me para muito longe nem para muito perto. Para longe deles, para perto de vocês. Já observou como as pedras jogadas às margens do rio são tristes, doutor? Sou uma dessas pedras, doutor. O tempo vai me cobrindo de tempo, lodo, tempo.
– Bobagem, doutor, esse sua mania de tentar me olhar através de mim como se eu fosse um espelho. Às vezes, tenho a impressão de que você está falando só com a minha roupa. Você se esconde por trás dos óculos como o avestruz enterra a cabeça na areia. Estamos um diante do outro e nada podemos fazer ou falar. As muralhas estão erguidas. As mãos não empunham martelos para derrubá-las.
– Que nada, doutor. Todos esses livros ao seu redor lhe fazem ficar pequeno como o diabo. Já não consigo suportá-lo, doutor. Somos inimigos. Só conseguimos nos olhar assim como estamos agora: você de um lado e eu do outro. Entre nós as muralhas.
Antônio AIRTON Machado MONTE (1949)
Médico formado na Universidade Federal do Ceará, é contista, dramaturgo, poeta e cronista. Assina, há mais de dez anos, uma coluna diária no jornal O Povo, com a qual ocupa o lugar de maior destaque na crônica do Ceará, posto já ocupado por nomes como João Brígido, Caio Cid, Milton Dias e Rogaciano Leite Filho. Publicou os livros Memórias de Botequim, poesia; O Grande Pânico (1979), Homem Não Chora (1981) e Alba Sangüínea (1983), contos; e Moça com Flor na Boca (2004), crônicas. Participou do Grupo Siriará e da memorável revista O Saco.
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