Gerardo Mello Mourão
Iam Caindo
Iam caindo: à esquerda e à direita iam caindo;
Alexandre e Francisco, meus bisavós tombaram,
o primeiro com sua farda de gala, seus botões de ouro
e sua patente de coronel
e o outro com sua barba nunca mais alisada e sua
bengala
de castão de ouro.
Antes, caíam hierárquicos e cronológicos:
Manuel Martins Chaves na prisão do Limoeiro,
Ana, Eufrosina e Úrsula Mourão, da Canabrava dos
Mourões,
em suas camarinhas cheias de santos,
Antônio, com seus bordados de general nos campos do
Paraguai,
um picado de cobra, outro sangrado a punhal, outro
varado à bala, outro
de maleita,
à esquerda e à direita foram todos caindo,
primeiro os que já eram lenda na memória dos velhos,
depois os avós de meus avós,
porque antes tombavam hierárquicos e cronológicos.
Foi assim que tombou, ao lado de seu rifle,
o Coronel José de Barros Mello, chamado "O
Cascavel", meu tetravô,
e depois o Major Galdino, entre seu bacamarte e suas
gaiolas de pássaros, depois, meu outro avô, o capitão de
cenho espesso sobre a tribo
ao talhe de seu tronco frondejando
a cabeça de Mellos e Mourões.
A esquerda e à direita iam tombando,
Úrsula, Francisca e tantas outras,
até cair meu pai.
Depois, começou a romper-se a ordenação da morte
e tombavam os tios e as crianças:
Etelberto, com seus negros cabelos lisos,
Raimundo prometera devolver à terra o que da terra
houvera e tombou nela;
Elisa, Elvina e tu,
com teus oito anos e tua cabeça castanha;
tombaram um por um: Ignácia e Ladislau viveram cem
anos e também morreram; tombou Quintino e nunca
mais
pela estrada de Águas Belas alazão levará
coronel tão galante e nunca mais na lua
da sela clavinote
tão certeiro;
tombou
Quintino e antes dele porque a morte ia deixando de ser
hierárquica e cronológica tombou no Maranhão
Francisco apunhalado.
A direita e à esquerda iam caindo:
Hermenegildo, chefe político e farmacêutico no distrito
do Livramento,
ainda teve forças para se erguer, beber uma garrafa de
aguardente, destruir a farmácia e escrever ao meu avô:
"Compadre, vou morrer, os remédios não valem nada
quando chega a hora;
mando-lhe aquele relógio Patek que você aprecia e a
corrente do mesmo,
com dois patacões de ouro. Adeus, compadre, Deus
o guarde com os seus,
do primo ass, Hermenegildo".
Outros tombaram sem carta e sem notícia:
meu tio e padrinho Antônio Ribeiro deu uma surra no
capitão delegado de Polícia
e desde a queda do Acioly desapareceu para sempre,
como Raimundo Mourão, tombado a tiros num seringal
do Amazonas:
tinha sessenta contos no bolso, surrara todos os
barraqueiros
e ganhara num sete de ouros
o dinheiro e as mulheres do cabaret: pois morreu, com
sua chibata na mão, com seus sessenta contos e com suas mulheres,
macho e inquebrável tombou.
À esquerda e à direita iam caindo:
Manuel
Mourão que registrara em seu nome todas as terras do
cartório de Ipueiras,
dorme nelas:
Tobias não tinha terra nenhuma
e matava bois no açougue e vivia disso,
tombou como um de seus bois;
à esquerda e à direita iam caindo
homens e mulheres: Tabajara, pai de Araci, Potiguara e
Tupinambá,
fabricava aguardente e não bebia - morreu abstêmio,
mas morreu;
o Major Borete Mourão, da Canabrava dos Mourões,
destilava a sua no próprio fígado — morreu bêbado,
mas morreu;
e Dondon e Cotinha e Missanta Mourão, senhora do
Engenho Baixa Verde
e Gilberto e Toínho Mourão e as primas que morriam
de parto e pariam filhos
também destinados a cair um dia,
foram caindo todos, à esquerda e à direita.
E agora sei: não apenas os de meu sangue iam caindo,
pois onde estão José Bento
e Sinhá e o Coronel Dédo Catunda?
Onde está o caboclo Antônio Pixuna,
com suas mandíbulas que varavam no dente uma cana
caiana?
Foram caindo todos: à direita e à esquerda e em todas
as cidades
Deolindo assassinado por Chico Monte em Sobral,
o velho Duíno em Minas Gerais, onde
também tombaram outros, Vicente
e sua mulher e Fernando no Espírito Santo e em Porto
Alegre,
com a pensão que lhe dera o Governo,
a filha de Antônio, general e herói da guerra do
Paraguai, comprava a sepultura,
pois
sabia que ia tombar, como tombou:
e em toda parte e em todo tempo, todos,
Bela, Manrica, Sinsa, Torquato, Zezé, Nazária, Aprígio
e Waldomiro,
Ignácio e Mariana e Atanagildo,
à esquerda e à direita iam caindo.
E ainda os que encontrei noutros caminhos
também foram tombando: esta é a bengala do Coronel
Carvalhinho,
pai do Senador e avô de Léa: tombou sem ela e
Geraldino
apagou seus grandes olhos e o jovem sacerdote
barroco
Caetano
partiu-se
o grande Cristo de bronze se abatendo sobre
a jarra de porcelana azul outrora azul do altar.
E tu mesma caíste, eu que te havia por
endereço do coração (e ainda cantarei de ti, que agora
tenho apenas o espanto
da implacável derrubada
em que todos vão tombando em toda parte).
Em minha casa, em minha rua e na cidade e no país dos
Mourões onde eram
clavinotes
e nos outros países além dos mares,
o velho Nicolau, pai de Gofredo,
quem sabe Cuca, a tia de Raul,
e em Milão e em Berlim e na Provença
foram caindo.
Apalpa, meu amor, meu rosto apalpa,
não tombei:
sou eu.
Como venho dos mortos nem eu sei,
mas sei que na partilha me tocou
a herança de sobreviver;
vou devorando a terra com meus olhos
que a terra não comeu, a terra
que comeu tantos olhos e da qual
os meus hoje se nutrem.
Apalpa, meu amor, meu corpo inteiro,
sou macho e forte e em meus ombros de touro
porque não te levar na madrugada
e atravessar contigo as ruas desertas e as ruínas e as
cidades
cobertas de hera onde
à esquerda e à direita eles tombaram e à beira
de um riacho ver teu ventre
crescer e irem surgindo
já de mãos dadas, já de pés em dança
rapazes e raparigas e a cantiga
de roda e a flauta de Mársyas e o ritmo
de tornozelos e ancas que Sextus Propertius foi o
primeiro
a introduzir na Itália e trouxe da Grécia para a Itália
e Ezra para Idaho
e das ruínas das cidades ver
surgirem os pastos e os pastores
da pedra das palavras?
Teu poeta e teu macho te carrega nos ombros
e à esquerda e à direita onde tombavam antes,
como um mágico de uma cartola irei tirando
de teu ventre inesgotável
os que não mais cairão, os que se irão
à esquerda e à direita incorporando. Pois
apenas esperavas a chegada de teu macho;
diz agora: era assim que o querias,
o vencedor da morte, o que enrijou os músculos
almoçando e jantando a medula dos homens e das fêmeas
que à sua esquerda e à sua direita iam caindo,
era assim que o querias
o que venceu a Dor?
Sou eu, amor, apalpa agora
minha boca pronta ao riso alegre,
minhas bochechas, apalpa-me
o sexo frondoso e fértil
e escancha as tuas pernas sobre o meu pescoço:
é tempo.
"Aos oito dias do mês de Janeiro do ano da
graça de Nosso
Senhor Jesus Cristo, de mil e novecentos
e dezessete,
eu, Manuel Guilhermino Moreira, recebi em meu
cartório o
Senhor Capitão José Ribeiro Mello que,
acompanhado das
testemunhas abaixo, declarou o nascimento
hoje, a uma
hora da madrugada, em sua casa, à Rua Padre
Feitosa, nesta
Vila de Ipueiras, de seu neto, o Inocente
Gerardo Majella,
do sexo masculino", etc.
E aqui restei: não venho
introduzir a dança na Itália,
trazer a dança da Grécia para a Itália
ou para qualquer outra terra de Europa:
sou o inocente do sexo masculino e venho
do país dos Mourões
comunicar-te a inocência e o pênis
erguido em lírio
vertical e puro sob os céus da Etrúria,
sob os céus da Toscana, às margens do Arno
e junto de Fiesole e San Minniato, sobre
os campos de Florença como o lírio
que deu nome à cidade e com que o rei de França
agraciou
as armas da cidade.
Ao pênis de ouro que se erguer do lírio,
a rosa de teu ventre se abrirá,
e onde o touro pisar no chão dorido,
a rosa de teu ventre se abrirá,
e onde o lombo do touro se reclinar contigo,
a rosa de teu ventre se abrirá
ao pênis de ouro que se erguer do lírio
e der nome às cidades e agraciar
as armas das cidades.
Wovon kommen Sie?
Jawohl, Fräulein,
na noite em que eu chegar
hás de ver tua aldeia renana
acender nas alcovas a alfazema antiga.
Wovon kommen Sie?
Mas da alfazema e tua aldeia
me suspeita há séculos:
esperava por mim a rapariga
que acendia os olhos e a lanterna de ferro
sobre o portal da Hospedaria
"Ao Cavaleiro de Koenigswinter":
eu era sugerido às raparigas
esperando a noite e quanta vez
sonharam distinguir-me na lonjura
entre as tulipas e o trigo e as espumas do Reno e luar
dele
sugerido
o süddeutsche Nacht!
o Heidelberge Nacht!
quem sabe eu chegaria
a bordo de urna brisa,
de uma folha de outono,
moreno
e torneado ao sopro
daquele tocador de flauta de louça
à porta do castelo de Brühl.
É certo que outros tentaram chegar antes de mim,
mas não me confundiste com eles;
de outros — nem os conheceste nem te conheceram,
o velho gangster não montava um cavalo do Texas:
na garupa da cadeira de rodas grunhiu:
"nossa fronteira está no Reno";
Beethoven surdo em sua casa de Bonngasse
ergueu-se e ergueu
ao ouvido sagrado o corno acústico
e o uivo do bárbaro não era
nem seu nome será em nosso idílio.
O nome dele, sim; veio de Hailey, Idaho, U.S.A.,
a 30 de outubro de 1885
e em seus ombros, amada, partirias:
era belo demais e foste tu
que rendida a seus pés deste a garupa
e o raptado raptor — ó delícias de Cápua —
divino gigolô lambendo os seios
da deusa ao fim do outono,
nas mãos do Pan de Idaho
reencontra o verão ao céu toscano,
Rapallo azul e a primavera à voz
do Pan de Idaho:
e o que te pudera arrastar às ilhas puras
embala-se contigo en los Cantares
dolci canti pisani in blood and blue
e a minha rede, a rede
do filho dos Mourões
entre a torre de Pisa e a de Giotto
sopro de campanile se balança
il nostro Cavazere fú:
e ali virás para a última sesta latina e onde
o lombo do touro galopar contigo
a rosa de teu ventre se abrirá
ao pênis de ouro que se erguer do lírio
e der nome às cidades e agraciar
as armas das cidades.
O Abendland, Abendländische
Elegie!
Velho profeta alemão, vidente de olhos cinzentas,
teus olhos cinza em cinza desmanchados,
toldam de cinza a paisagem:
olha a nua banhista, esverdeadas peras,
olha a dança, olha
o elegíaco nada, o nada
de elegias e à madrugada
entre as virilhas
olha amanhecer o macho:
sou eu e em meu louvor
maduram-se laranjas e ananases,
em meu louvor
as ondas bailam no oceano e sob
a verde umbrela dos coqueiros
Passo de Carnaragibe,
os cocos se arredondam
em meu louvor
e os cantadores na feira de São Gonçalo dos Mourões,
da Canabrava dos Mourões
e os cegos e os videntes e o gitano andaluz
entre o Atlântico e a montanha empreendem na viola
a minha louvação:
e Hans Carossa, na aldeia hamburguesa,
o último hálito sopra dos olhos a última cinza,
compõe no próprio rosto a própria morte
em meu louvor.
E meus olhos
assíduos a defuntos como a vivos
começam a apalpar-vos:
quem será testemunha senão vós
de partida e chegada?
E que sou eu senão
a celebração de meu rosto
e que é meu rosto senão
a beleza que o amor talhara nalguns olhos?
Sempre os deuses precisam de um lugar e de uma companhia:
assim eu sou:
é sobre a terra de meu pai que me levanto agora
e a tantos
que à esquerda e à direita lhe caíram,
eu os chamo e suplico:
e altar e coro se incorporem
e assim
eu sou:
celebrado celebro dia e noite
a terra e as águas e as pessoas
e assim
eu sou.
GERARDO MELLO MOURÃO (1917)
Poeta e romancista nascido em Ipueiras. Adepto do Integralismo, passou seis anos preso, chegando a ser condenado à morte por ter cometido atentado contra Getúlio Vargas, sendo perdoado graças ao apelo do escritor francês Albert Camus, de quem era amigo e tradutor. Fluente em nove lígnuas, traduziu em todas elas, destacando-se o grego e o chinês. Foi Deputado Federal por Alagoas. Exilado na Ditadura Militar na China. Em 1979, tornou-se o único brasileiro a ter sido indicado ao Nobel de Literatura. Escreveu, dentre outros, No País dos Mourões (1963), Peripécia de Gerardo (1972), Rastro de Apolo (1977), que formam a trilogia Os Peães, Invenção do Mar (1999), vencedor do Prêmio Jabuti, além do romance O Valete de Espadas, considerado revolucionário do gênero.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home