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Location: Fortaleza, Ceará, Brazil

Friday, October 28, 2005

Gustavo Barroso


Santa
A Alberto de Oliveira
E eu? Cega, sozinha neste mundo de
Deus? Que há de ser de mim?
COELHO NETTO: Sertão

Novembro. Andava-se já em seca brava. As águas tinham fugido. Entre os arbustos ressequidos terreavam mouchões de felga quistosos e nus, de onde o vento levantava à tarde uma poeirada de oiro.
Aos solavancos duros, o meu cavalo fatigado descia a última rampa da serra do Pereiro. Pela lomba íngreme, marcada de antigas aluviões erodentes, aqui e ali pungam touceiras enfezadas de arbustos espinhosos. A estrada sarjava de vermelho a terra desnuda, sem fiapos de gramíneas, com esqueletos de árvores. Só muito alto, onde havia mais frescura, azulesciam matos. A planície erma do sertão enchia-se da nevoaça das queimadas, acinzentando-se com o cair do dia. Para o poente esbatia-se uma amarelidez de crepúsculo. Alto, o céu era cinzento, deserto e tranqüilo como a paisagem. Um parecia refletir o outro. Todos os tons que durante o dia o sol esbraseara abrandavam-se, desmereciam: eram cinzento-pérola as capoeiras abertas, branco-cinza as extensões queimadas, azuladas as serranias que fugiam no horizonte, empastadas de bistre e sépia as várzeas que se ermavam e que se confundiam à distância. Raros sons quebravam a uniformidade do silêncio. Mais raros vultos moviam-se na tristeza monótona do cenário.
Finda a ladeira esconsa, a terra estéril retalhava-se nos barracos das enxurradas antigas. Sombras adensavam-se, confundindo-se, nos anfractos das pedreiras. Às vezes, dominando o carrascal morto, dormitava na quietude do espaço uma canafístula sempre viva, decotada a foiçaços.
Detive-me numa volta do caminho, à porta duma choupana arrincoada, que se aninhava na orla da selva despida de folhas. O terreiro era espanado e limpo pela vassoura e pelo vento. Surgiam-lhe em torno, adoidadamente, grandes casas de cupim, dum amarelo de ocre. Escurecia. Luzeluziam pirilampos. Sopros ainda fracos do aracati refrescavam a calidez da soalheira passada, que se desprendia do solo maninho em emanações de mofo. Arejos mais fortes levantavam pó. Aquele vento do litoral que toda a tarde invadia o sertão pelo vale do rio Jaguaribe, chegava tarde por aquelas alturas. Era longa a sua viagem benéfica da costa às faldas do Pereiro.
Bradei à porta:
- Oh! de casa!
Apareceu uma cabocla forte e esperta, com dois filhinhos a se agarrarem nas dobras amplas de sua saia de algodão listrado. Rumorejou afável que desapeasse, prendesse o cavalo à tacaniça e entrasse.
- A casa é sua, moço.
Estava só com os filhos. Era noite, mas o marido ainda roncava pelos ermos, em busca das vacas moribundas nos rincões ásperos da serra, onde subiam, sequiosas, esfomeadas, migrando da planície estéril à cata de sombra, de comida e de água. Lá, nada também encontrando, morriam de inanição e de miséria. Às vezes os seus gemidos vinham até a casa, roucos, sinistros, pausados, numa distância de aflição, num soluçar de desesperança. Os gaguejos fracos dos bezerrinhos pareciam ate choro de crianças. Ouviam-nos o dia todo. À tarde diminuíam. De noite apagavam-se. Então guaxinins e raposas andavam a guaiar, sandejando pelas quebradas. Os pobrezinhos tinham acabado de sofrer.
Em setembro o vento levara as últimas folhas secas. Mas nas abas das serrotas acamavam-se as pastagens suculentas e amareladas. Era grande o cuidado com elas. Ficavam longe da estrada. Não havia perigo de fogo pelo descuido dum comboeiro fumador. No entanto, como por castigo, havia pegado fogo o pasto do Zacarias, meia légua adiante, e os carcarás, catando bichos grelhados no braseiro, trouxeram nas garras garranchos inflamados que deixaram cair no capinzal seco. O incêndio lavrou. Ficou destruído o último alimento do gado infeliz.
Agora por ali todo o solo estendia-se sáfaro, calcinado, negro, léguas e léguas. E a gente sentia, ao vê-lo, uma funda tristeza a subir do peito, uma ânsia, uma saudade de olhar grandes campinas muito verdes, com águas estremecidas, reluzindo.
Entrei na casinhola. O interior era mais que humilde. Presa ao tapume, a candeia de querosene oscilava. Sombras iam e vinham pelo teto enxalmado. Num raio de luz faiscava, às vezes, o bocal polido duma arma, pendurada às forquilhas bidentadas, ou palpitava em pingos brilhantes a pregaria grosseira duma mala de couro. A chaleira rumorava sobre uma trempe, entre labaredas desiguais. Estalavam garranchos ao fogo. Desprendiam-se centelhas, a espaços, em penachos e leques.
A mulher enxotou os filhos, bruscamente, para o quarto. Deu-me numa xícara de esmalte enodoado um pouco de café. Fui sorvendo-o a goles compassados. Ela encostou-se à ombreira do quarto em silêncio; e os caboclinhos vieram de novo agarrar-se-lhe às saias, curiosos, a espiar-me.
Fora já era noite fechada, escura como breu. Quase não se viam estrelas. As constelações apagavam-se, pestanejando. Fiz uma nova pergunta sobre a seca. A sertaneja suspirou e vagarosa, resmoendo aflições, descreveu-me toda a ferocidade da natureza e toda a valentia dos vaqueiros. "Deus até parece que não tem pena da gente", disse ela. Água, iam-na buscar a duas léguas, ladeira acima. Já haviam morrido as suas poucas cabeças de gado. As do patrão acabavam-se aos pares por dia. Andavam a comer a carne seca das ovelhas que tinham morto antes que a fome as levasse. Dia a dia a situação piorava. A luta já era desesperada. Os filhos do Joaquim Simeão, cansados de lutar sem proveito, tinham procurado o seu rumo. Estendeu o braço à toa como a indicar uma paragem longínqua, que mal entrevia na sua imaginativa rude, que mal podia compreender na curteza de suas idéias:
- Os Almazonas.
No terreiro riscou um cavalo. E o marido, um caboclo ossudo, alto, entrou, arrastando as esporas rudes, todo vestido de couro avermelhado, com as grossas costuras brancas de poeira.
A mulher explicou a minha presença. Sorriu hospitaleiro e bom, com um gesto largo de franqueza ostensiva. Foi tratar-me o cavalo. Era pouca a água, mas chegaria para o meu, cansado da viagem, e para o dele, tonto de varar a mataria garranchenta. Quase não tinha milho no paiol. O cercado, porém, guardava ainda um resto incolor de panasco, seco.
Ela começou a arranjar o "de comer". Novo silêncio encheu o copiar. Uma raposa vadia gaifonava ao longe, nos carrascais desertos.
O vaqueiro reapareceu. Sentamo-nos ao chão sobre um couro de boi e, calados, devoramos um alguidar de carne cozida n’água e sal, com pirão de farinha grossa. Os dentes às vezes rangiam, mastigando torrões de barro encontrados na farinha. Pela porta entrou, a fazer festas com a cauda troncha, os olhos verdes humildes e famintos, um cadelo esquelético. Acompanhava de perto, sofregamente, os ruídos todos da mastigação. Era o verdadeiro espectro da fome. Mas logo o vaqueiro ergueu o braço: Sai daí, Rompe-Nuvem! O mísero encolheu-se, levantou-se corcoveado e foi sentar-se mais adiante, à soleira, ofegando, com as riscas das costelas justalinheando-lhe os flancos murchos.
Tomamos café. O sertanejo dependurou minha rede a um canto da quadra. A mulher enrolou o couro, depois de o haver sacudido com força, e, raspando com a colher de estanho o alguidar de barro, deixou cair ao chão fiapos de carne, migalhas de pirão e ossinhos pequenos. O cão veio de rastos, encolhido e ávido, lambeu a argila demoradamente e ficou-se depois, para ali, a triturar os ossos nos dentes. De quando a quando soltava um rosnado lento advertência de estar disposto a defender o seu quinhão.
Na alcova, a cabocla cantarolava, ninando os dois filhos. Na sala, o vaqueiro remendava as véstias de capoeiro rasgadas nos espinhos unciformes dos arbustos maus que nem a seca matava. Saí ao alpendre e acendi o cachimbo, olhando a noite escura. Passou-se algum tempo. Depois, ao longe, surgiu uma luz que cortou a treva direita ao rancho, com vagar, oscilando. Vinham dois vultos, um dos quais trazia uma lanterna envidraçada; já no alpendre distingui-os bem. Eram uma velha acurvada e rusguenta, apoiando-se a um bastão, e uma criancinha loura e triste. Deram-me boa-noite e entraram na casa, pouco se demorando. Saíram. E de novo a luz foi oscilando, a apagar-se pela escuridão afora.
Chamei o vaqueiro e indaguei curioso do que andavam a fazer aqueles dois entes fracos por noite tão negra, quando chocalhavam cascavéis de tocaia e uivavam raposas insofridas, aos bandos, esfaimadas. Então ele contou uma melancólica história de dor, de martírio e de abnegação.
Era o mais avaro e o mais rico fazendeiro daquelas redondezas o velho Chico de Paula, que ao morrer deixara aquela velhinha, sua mulher, dona de grandes fazendas, oiros, lotes de bestas parideiras, boiadas incontáveis, currais cheios de miunças, além do sitio da serra que era um "condado", onde a maniçoba abundava nos recostos dos morros e dos altos paus d’arco baixavam as nervuras dos cipoais, como antenas enormes. Fora sempre brutal e ríspido, humilhando-a tanto quanto judiava com seus acostados e serviçais. Ela não tinha voz para cousa alguma. O negregado mal lhe dava os meios de subsistência, restringindo, cúpido, semana a semana as despesas domésticas. Ralhava com todos, enfezado, a cada momento. A sua morte foi um alívio e nessa ocasião a pobre D. Maria, sua única herdeira, logo pudera ajudar a pobreza que a seca fora grande e a fome muita. Dessas esmolas fez repetidas vezes. As crises mesmo lhe davam prejuízos fortes. Pouco se importava. Parecia querer espalhar em benefícios aquela fortuna reunida por maldades. Teve a mania de criar todas as crianças abandonadas da ribeira. Umas eram órfãs, outras orfanadas pela necessidade dos pais ocultarem vergonhas. Sua casa foi um asilo. Cresciam ali como filhos e ao casarem recebiam um pequeno dote. A mulher do vaqueiro era uma dessas enjeitadas.
E não fazia só isso. Quem precisasse, poderia bater à sua porta. Era servido. De sua ilimitada bondade os maus se aproveitavam até para a explorarem.
Criara umas doze pessoas e sua fama já percorria o sertão do Cariri. Todo o mundo dizia que era santa e essa crença arraigava-se dia a dia na alma sofredora dos roceiros.
Com os anos empobrecera aos poucos. Um incêndio levou-lhe a casa da fazenda. As últimas terras que possuía amaninharam-se ao abandono. Reduzida à miséria, morava agora numa palhoça que o vaqueiro construíra na várzea. Teimava em ficar lá, desprezando os convites de vir para a casa dele. Ia em oito anos que criava aquela menina dum louro de milho fanado, enjeitadinha, a última talvez. Tinha setenta e oito anos de caridade e amor. Não suportava mais nos olhos enevoados a ardência do sol. Era obrigada a sair de noite, a procurar víveres nas casas dos que alimentara durante largos anos.
Ao partir, deixei-lhe uma esmola e nunca mais esqueci aquele heróico vulto de mulher sertaneja, nobre, doce, abnegada, fazendo frente às calamidades terríveis do seu áspero meio, abroquelada na sua virtude excelsa e na sua alma desprendida, que valia por uma instituição forte de beneficência.
Tempos depois voltei àqueles lugares e na casa humilde do vaqueiro serviu-me água, vestida de luto, uma criança loura. Adivinhei naquela roupa de dó a morte da velhinha. O vaqueiro confirmou o meu presságio, dizendo-me que se finara placidamente, a sorrir, sem uma convulsão, sem um estertor, como soem morrer os justos e os santos. Até corria entre o povo que a terra não comeria o seu cadáver, preservadas as carnes mortais pela santidade eterna da sua alma...
GUSTAVO DODT BARROSO (1888-1959)
Nascido em Fortaleza, estudou na Faculdade de Direito do Ceará, mas bacharelou-se na do Rio de Janeiro, em 1911. Escritor dos mais prolífero, com mais de cem títulos catalogados nas mais diversas áreas, como História, Biografia, Arqueologia, Museologia, Economia, Folclore, Lexicografia, Literatura histórica, didática e infantil, Política, Memórias, Viagens, Teatro e Conto. Alguns de seus principais trabalhos: Terra de Sol (1912), A Guerra do Artigas (1930), A Guerra do Vidéo (1930), A Guerra do Rosas (1929), A Guerra do Flores (1929), A Guerra do Lopes (1929), Consulado da China (1940), Praias e Várzeas (1915), Alma Sertaneja (1923), O Santo do Brejo (1933) e História Secreta do Brasil (1937-38), em três partes. Adepto do movimento Integralista. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1923, foi dela duas vezes presidente.

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