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Location: Fortaleza, Ceará, Brazil

Wednesday, October 26, 2005

Eduardo Campos


O Enterro ou A Casa Sem Cão


A mulher, à pressa, já segurava a bolsa para sair, depois de verificar atenta se o fogão a gás não ficara com alguma boca acesa; e se voltou para o pai idoso, recomendando:
Estou de partida. Tenha cuidado na casa. Demoro pouco.
Ia acrescentar que por urgente necessidade tinha de se ausentar, pois precisava ganhar uns trocados a mais para dobrar a resistência do bodegueiro sem mais querer fiar... Parou. O outro dizia-lhe decidido:
– Vou sair também. Cadê o meu paletó?
Ela estacou surpresa:
– Sair? sair pra onde?
A voz do homem soou enérgica e resoluta:
– Você estava na cozinha, nem prestou atenção. Deu a notícia no rádio...
– Que notícia, pai?
– Você conhece, não... Era meu grande amigo. Morreu. Coitado do Belisário.
– Tão importante assim para merecer registro em programa de rádio? Não, papai, o senhor se confundiu...
Ele insistiu, a cobrar:
– Cadê o meu paletó?!
Seu paletó foi comido pelas traças... Tinha virado peça de museu.
Me parecia ainda bom de uso. A última vez...
Ela interrompeu-o:
– Isso foi há doze anos, quando faleceu o vizinho.
– Sei disso não. Bom, só sei que vou ao enterro do meu amigo Belisário. Sem paletó. Todo mundo vai reparar. É que nunca vesti silaque em cerimônia social.
– Papai, não quero teimar, mas tudo não passa de um equívoco. O locutor...
– ... o locutor falou bem duas vezes o nome dele, o endereço, deu tudo! Meu amigão! E você não sabe...
– Não sabe o quê?
– Tínhamos um pacto. Ele jurou, eu jurei também: se um dos dois morresse primeiro, o que ficasse estaria obrigado a ir ao enterro, estivesse onde estivesse. Assim vai ser... Deus o chamou em primeiro lugar, tocando a mim, agora, cumprir a palavra empenhada.
– Que palavra empenhada! Isso passou! E por favor vá sossegar tenho de ganhar o meu dinheiro.
– Ah, então é desse modo? Muito bem! Não causa admiração que o mundo esteja – me deixe dizer um nome feio – nessa esculhambação de hoje. Não! Sou de ontem, de tempo em que as pessoas possuíam palavra, cumpriam o trato. Cedia o lugar de sentar nos bondes a uma dama, ajudava a idosos...
– Papai, escute bem. Os seus netos já foram trabalhar, e eu só vou sair por extrema necessidade. Dessa forma o senhor não pode comparecer ao sepultamento do seu grande amigo. Por isso, é melhor se contentar com uma oração...
– Oração é coisa de protestante. Eu rezo.
– Pois então reze. Dá tudo igual. Contanto que fique em casa. A nossa, repare, não pode ficar sem ninguém, principalmente com a onda de ladrões solta no bairro...
– ... ladrões aqui ?!
– É onde dá mais.
Ele ficou pensativo. Depois de um momento, lembrou:
– Deixe o cachorro botando sentido. Você pode ir pegar os seus trocados, como falou, e eu sigo para cumprir o meu acordo...Paciente, ela explicou:
– O senhor deve estar esquecendo as coisas... O Japi morreu... morreu de velhice. E nós não tivemos condições de adquirir outro animal de guardar a casa.
– Agora deu ruim! Eu não posso desfazer o trato com o falecido. O Belisário se estivesse em meu lugar, com paletó ou sem paletó ia acompanhar o meu enterro. Foi o melhor amigo que tive, marido exemplar.
Ela moveu a cabeça, aborrecida:
– E tem mais, papai, o dinheiro que vou receber é importante para pagar a mercearia. De outro jeito, se duvidar, vamos ter de passar fome... E mesmo...
– Mesmo o quê?
– O senhor, aos oitenta, não tem mais condições para sair de casa, desacompanhado.
– Minha companhia é Deus. Me considero forte, me levanto sozinho de noite para ir ao banheiro... e...
– Mas não pode.
– Alugo um menino do vizinho. Ainda tenho uma pontinha de dinheiro da aposentadoria.
– Compreenda, papai! A família do tal Belisário na certa nem sabe se o senhor existe. Bem, a hora está passando e preciso, agora digo como o senhor, preciso cumprir meu trato.
– Meu Deus, a que ponto cheguei na vida! Minha própria filha quer que eu fique desmoralizado. Contando não tem quem acredite!
– Ela tornou a insistir em tom amável:
– Papai, vá sentar-se na sua cadeira de vime, perto da porta... Prometo, prometo de verdade! Vou ficar atenta aos jornais! Podemos ir juntos à missa de sétimo dia.
– Missa de sétimo dia não é enterro. Não aceito esse tipo de solução.
E com convicção, exaltando-se:
– Vou ao enterro, VOU!
– Papai...
– VOU, VOU!
Foi só um instante, tempo em que ela apreensiva consultou o relógio, a ver que horas davam, e decidiu:
– Não tem acordo, não tem paletó, não tem enterro! Vá sentar na cadeira como estou mandando, que preciso ganhar o meu dinheiro. É isso!
– Deus castiga a quem maltrata os pais.
– É sentar bem direitinho e não deixar a casa só. Os ladrões, repito, andam por aí. Se duvidar vão entrar aqui e carregar o seu rádio. Vá, vá, vá, me obedeça!
Fê-lo arriar-se na cadeira de vime, nervosa, considerando que se não partisse quanto antes não teria como passar a roupa, tarefa a que se obrigara de véspera.
– Não deixe ninguém entrar. Ninguém mesmo!
Ele esteve para altear o tom da voz e protestar mais uma vez, chutar os móveis da sala, gritar palavrão, chorar, até chorar...
Mas se reconheceu trêmulo, esmorecido, e na realidade sucumbido por não poder, como prometera, honrar o compromisso com o Belisário.
E se deixou ficar batendo o pé no chão, perdidamente magoado.
Dolorosamente cão.



EDUARDO CAMPOS (1923)

Natural de Guaiúba, bacharelou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará em 1948. Jornalista, contista, romancista, teatrólogo, ensaísta, folclorista e memorialista. Membro do Grupo Clã, do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras, da qual foi presidente. Suas principais obras são O Chão dos Mortos (1974), A Véspera do Dilúvio (1968), romances; O Abutre e Outras Estórias (1968), O Tropel das Coisas (1970), Dia da Caça (1980), contos; O Demônio e a Rosa (1948) O Morro e o Ouro (1965), A Rosa do Lagamar (1965), teatro.