Literatura Cearense

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Location: Fortaleza, Ceará, Brazil

Saturday, December 17, 2005

Francisco Carvalho


Tangedor de camelos

Árabe, tangedor de camelos
íntimo do deserto
e das areias
tocava lentamente as caravanas
guiado pelo odor da água
a setenta léguas
de algum oásis sonhado
pelos beduínos
e também pelo cheiro de sândalo
dos seios das dançarinas
ao luar dos gumes das adagas.

Lavoura

As minhas mãos
já foram robustas
já plantaram
sementes de milho
nas terras dos filisteus
hoje só semeiam
as lavouras do adeus.

Poema para escrever no asfalto

Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração
e o quanto sobra do naufrágio
das nossas utopias.
Agora eu sei o que significa a fala dos mortos
e esta parábola soterrada
que jorra das veias da pedra.
Agora eu sei o quanto custa o ouro das palavras
e este pacto de sangue
com as metáforas do tempo.
Agora eu sei o que se passa no coração de treva
e do homem que morre mendigando
a própria liberdade.
Agora eu sei que o pão da terra nunca foi repartido
com a nossa pobreza
e com a solidão de ninguém.
Agora eu sei que é preciso agarrar a vida
como se fosse a última dádiva
colocada em nossas mãos.

FRANCISCO CARVALHO (1927)
É, essencialmente, poeta. Autor de dezenas de livros do gênero, dentre os quais se destacam Canção Atrás da Esfinge (1956), Do Girassol e da Nuvem (1960), O Tempo e os Amantes (1966), Dimensão das Coisas (1967), Memorial de Orfeu (1969), Os Mortos Azuis (1971), Pastoral dos Dias Maduros (1977), As Verdes Léguas (1979), Rosa dos Eventos (1982), Quadrante Solar (1983) - Prêmio Nestlé de Literatura, As Visões do Corpo (1984), Barca dos Sentidos (1989), Rosa Geométrica (1990), Exercícios de Literatura (1990), O Tecedor e sua Trama (1992), Crônica das Raízes (1992), Flauta de Barro (1993), Galope de Pégaso (1994), Soanta dos Punhais (1994), Artefatos de Areia (1995), Textos e Contextos (1995), Rosa dos Minutos (1996), Raízes da Voz (1996), Os Exílios do Homem (1997). Membro da Academia Cearense de Letras.

Monday, December 12, 2005

Dimas Macedo


Crônica

Fortaleza de noite:
eis todo um argumento
para viver a vida
plena de sentimento.
Deslizo pelas ruas
sorvendo antiga brisa.
No rio do asfalto
a noite se eterniza.
Fortaleza tem corpo
e atração fatal
que sangra nossos olhos
com lâmina de punhal.
Sou todo fortaleza,
penumbra e nostalgia.
Existo enquanto sonho
sua geografia.
Em noites de insônia
Fortaleza é assim:
é casa do espírito,
é princípio e é fim.

Formas

A lua e as estrelas,
o sol e os alabastros,
as cicatrizes de Deus
e as mulheres nuas
são formas puras do amor
que reconheço,
são como cactos
que me ferem os olhos
na distância,
tais os mistérios densos,
as perdas preciosas,
a dor de não viver a vida
presa na garganta.

Subitamente

Subitamente
é preciso que os relógios parem,
porque tudo será pedra sobre pedra,
e tudo.
Não mais restarão
as tuas mãos que necessito,
as tuas palavras sem gestos
que eu procuro...
não mais restará o teu silêncio
que o meu silêncio pede,
pois as armas e os brasões
hão de florir por sobre a infância,
e tudo será rocha.

Ânsia

Os sentidos da vida
que me chegam.
Os sentidos da vida no momento.
Porque no centro da alma
há um castelono qual escuto
as confissões do vento.
E bem no fundo da alma
há uma tela muito mais bela
ou igual à minha ânsia,
porem a ânsia que sinto
é um conflito
muito maior
que a nave da existência.

DIMAS MACEDO (1956)
Poeta, crítico literário e jurista, é professor do Faculdade de Direito de UFC. Outor de, dentre outros, A Distância de Todas as Coisas (1980), Lavoura Úmida (1990), Estrela de Pedra (1994) e Liturgia do Caos (1996), poesia; Literatura e Conjuntura (1984), A Metáfora do Sol (1989) e Crítica Imperfeita (2001), crítica literária. Membro da Academia Cearense de Letras.

Carlos Augusto Viana


Os Corredores da Memória


1
quantos roçados de pranto
regados

prosseguem
no rosto
sobreviventes raizes

soturnos
percorremos
os silentes corredores da memória

2
cal e sofrimento
recompõem
o território em ruinas

no tecido da linguagem
estampam-se
palavras e paisagens

3
serpenteia-se
a procissão
dos mortos

não trazem
chamas
cânticos ou incensos:

apenas
anunciação

Cantiga de Desconsolo

Meu pai
incrustou domicílio
no Cemitério do Pecém:
tanto
para adormecer melhor
sob o sussurro das marés,
quanto
para perscrutar,
mesmo em pó,
a fragmentação de asas
e a explosão dos açúcares.

Eu mesmo o acompanhei até lá:
os cílios em dor.
(Amparava-me uma das alças de seu caixão.)
E desde aquele crepúsculo
de cinzas e interjeições dolorosas,
nunca mais o visitei.
Para quê?
Se não mais poderá tocar-me o ombro:
- Filho!

A Báscula do Desejo

1
O mar inventa canteiros nos cílios das areias,
multiplica-se no marulhar do ar nos grãos de milho
move-se em murmúrios nas conchas múltiplas do alpendre.
Estilhaços da chuva na memória:
um mapa embrulhado nas pálpebras,
um cavalo singrando o arco-íris,
um girassol se contorcendo num jarro.
2
Teus peitos em chamas cobrem de espumas as ilhas,
as franjas do vento inauguram temporais.
Teu corpo se derrama, enorme, sobre as dunas
que a mão dos vendavais tece no litoral de novembro.

O amor são as patas do cavalo
sobre os espelhos das campinas,
o sol incendiando a penugem do canavial,
o mapa dos olhos no escuro,
uma cidade que se despe como um calendário.

O amor é um roçado de enigmas,
claros como o silêncio dos retratos,
iniludíveis como o olhar dos bois,
ávidos
como as mãos que cavam a terra
ou os pés que namoram caminhos.

Amar é escrever teu nome
no ventre de uma inacessível praia
onde adormecem um deus e as cordas de uma guitarra.
Amar é escrever teu nome
como se escreve um poema sem palavras,
assim como a noite se inscreve na solidão de um homem.

3
O amor
se
pétalas
empre
exala

por isso
amar
não conserva arames
em suas léguas

4
De teus olhos em água
saltam inscrições em fogo,
assim como existe um outro mar
que se desdobra além das ondas,
um calendário nas sombras
que se diluem nas paredes.

De teus olhos em água,
as inscrições em fogo
tingem de nova cor a paisagem
e dão às horas o enigma dos minerais.

Das inscrições em fogo,
o amor e sua linguagem de água,
o amor e suas sombras nas areias da memória.
O amor
e a escritura de seu abandono,
as tenebrosas buscas, as urtigas da dúvida,
o trigo interrompido, o gesto não pendoado,
o grão das horas a arder sob o sol das esperas.
O amor
e suas mãos que palmilham palavras,
o inatingível, o inumerável,
o que não se conhece, o que não se aprende jamais.

Soneto com mel e porcelana

Tens os olhos mais belos desta aldeia,
a pele da manhã inaugural;
a voz derrama harpas e incendeia
as flores que se encrespam no trigal.
Se um rio de teus passos se alteia,
guitarras enlouquecem no varal;
o sol perde o seu lume; o grão da ceia
se espalha sobre a mesa, musical.
O teu corpo é de um barro alucinado,
fruto de finas águas; e os tecidos
que o cobrem têm um âmbar cultivado
por dedos de farândulas tingidos.
Melodias azuis, mel derramado
na cega porcelana dos ouvidos.

CARLOS AUGUSTO VIANA (1955)
Jornalista do Diário do Nordeste e professor dos colégios 7 de Setembro, Batista, Geo e Master e da UECE. Autor dos livros Primavera Empalhada, Inscrições dos Lábios (2002) e a Báscula do Desejo (2005), este vencedor do Prêmio Osmundo Pontes em 2003, todos de poesia, além do ensaio Drummond: A insone arqitetura (2004). Membro da Academia Cearense de Letras.