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Location: Fortaleza, Ceará, Brazil

Monday, December 12, 2005

Carlos Augusto Viana


Os Corredores da Memória


1
quantos roçados de pranto
regados

prosseguem
no rosto
sobreviventes raizes

soturnos
percorremos
os silentes corredores da memória

2
cal e sofrimento
recompõem
o território em ruinas

no tecido da linguagem
estampam-se
palavras e paisagens

3
serpenteia-se
a procissão
dos mortos

não trazem
chamas
cânticos ou incensos:

apenas
anunciação

Cantiga de Desconsolo

Meu pai
incrustou domicílio
no Cemitério do Pecém:
tanto
para adormecer melhor
sob o sussurro das marés,
quanto
para perscrutar,
mesmo em pó,
a fragmentação de asas
e a explosão dos açúcares.

Eu mesmo o acompanhei até lá:
os cílios em dor.
(Amparava-me uma das alças de seu caixão.)
E desde aquele crepúsculo
de cinzas e interjeições dolorosas,
nunca mais o visitei.
Para quê?
Se não mais poderá tocar-me o ombro:
- Filho!

A Báscula do Desejo

1
O mar inventa canteiros nos cílios das areias,
multiplica-se no marulhar do ar nos grãos de milho
move-se em murmúrios nas conchas múltiplas do alpendre.
Estilhaços da chuva na memória:
um mapa embrulhado nas pálpebras,
um cavalo singrando o arco-íris,
um girassol se contorcendo num jarro.
2
Teus peitos em chamas cobrem de espumas as ilhas,
as franjas do vento inauguram temporais.
Teu corpo se derrama, enorme, sobre as dunas
que a mão dos vendavais tece no litoral de novembro.

O amor são as patas do cavalo
sobre os espelhos das campinas,
o sol incendiando a penugem do canavial,
o mapa dos olhos no escuro,
uma cidade que se despe como um calendário.

O amor é um roçado de enigmas,
claros como o silêncio dos retratos,
iniludíveis como o olhar dos bois,
ávidos
como as mãos que cavam a terra
ou os pés que namoram caminhos.

Amar é escrever teu nome
no ventre de uma inacessível praia
onde adormecem um deus e as cordas de uma guitarra.
Amar é escrever teu nome
como se escreve um poema sem palavras,
assim como a noite se inscreve na solidão de um homem.

3
O amor
se
pétalas
empre
exala

por isso
amar
não conserva arames
em suas léguas

4
De teus olhos em água
saltam inscrições em fogo,
assim como existe um outro mar
que se desdobra além das ondas,
um calendário nas sombras
que se diluem nas paredes.

De teus olhos em água,
as inscrições em fogo
tingem de nova cor a paisagem
e dão às horas o enigma dos minerais.

Das inscrições em fogo,
o amor e sua linguagem de água,
o amor e suas sombras nas areias da memória.
O amor
e a escritura de seu abandono,
as tenebrosas buscas, as urtigas da dúvida,
o trigo interrompido, o gesto não pendoado,
o grão das horas a arder sob o sol das esperas.
O amor
e suas mãos que palmilham palavras,
o inatingível, o inumerável,
o que não se conhece, o que não se aprende jamais.

Soneto com mel e porcelana

Tens os olhos mais belos desta aldeia,
a pele da manhã inaugural;
a voz derrama harpas e incendeia
as flores que se encrespam no trigal.
Se um rio de teus passos se alteia,
guitarras enlouquecem no varal;
o sol perde o seu lume; o grão da ceia
se espalha sobre a mesa, musical.
O teu corpo é de um barro alucinado,
fruto de finas águas; e os tecidos
que o cobrem têm um âmbar cultivado
por dedos de farândulas tingidos.
Melodias azuis, mel derramado
na cega porcelana dos ouvidos.

CARLOS AUGUSTO VIANA (1955)
Jornalista do Diário do Nordeste e professor dos colégios 7 de Setembro, Batista, Geo e Master e da UECE. Autor dos livros Primavera Empalhada, Inscrições dos Lábios (2002) e a Báscula do Desejo (2005), este vencedor do Prêmio Osmundo Pontes em 2003, todos de poesia, além do ensaio Drummond: A insone arqitetura (2004). Membro da Academia Cearense de Letras.

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