Literatura Cearense

Name:
Location: Fortaleza, Ceará, Brazil

Tuesday, September 05, 2006

Pacheco Espinosa

Soneto

Alegrai-vos ó Chefe eslcarecido
Pois que extinta está a cruel guerra:
Já respira alegria toda a terra,
Já se esquece do que tem padecido.

Alegra-vos, Congresso enobrecido,
Que a paz, a Santa paz que o mal desterra,
A guerra afugentou que tudo aterra,
E tudo deixa a cinzas reduzido!

Venceu a justa causa: aniquilidado
Esse monstro ficou, esse Tirano,
Que há de perpetuamente ser odiado.

Regozija-te é bravo lusitano!
Vivas repete, Exército aliado!
Exulta de prazer, Americano!

Soneto Para o Chafariz da Vila Fortaleza

Esta que vês, curioso passageiro,
Límpida Fonte, clara, sussurante,
De cristalinas águas abundante,
Que o Sítio faz ameno, e lisonjeiro:

Este manancial de água, o primeiro
Que fez surgir na Vila arte prestante,
Para a sede saciar o caminhante,
O sábio, o nobre, o rico, o jornaleiro:

Edificada foi incontinenti,
No memorável, óimo Governo,
De Sampaio, Varão reto, ciente.

Como ao Povo mostrou amor Paterno,
Para todo o seu bem foi diligente,
Nesta Fonte deixou seu nome eterno.

Soneto Ao Aumento da Vila de Fortaleza

Vai, ó Fama, por toda redondeza,
Publicando por tuas bocas cento,
Do Ceará que foi pobre o muito aumento,
A grende exportação, suma riqueza.

Dize que ja se vê fausto e grandeza,
Na sua Capital do Chefe assento:
Que polícia já tem, tem luzimento,
E tem o que não tinha, Fortaleza.

Dize que do Governo a alta mente
Estas ob ras brotou assaz louvadas,
Por todos, sim, por todos geralmente;

Erários novos, rampas e calçadas,
Aterro, Chafariz, Aula excelente,
Novas ruas, muralhas elevadas!


JOSÉ PACHECO ESPINOSA (? - 1814)
Originário da Ilha da Madeira, foi um dos principais comerciantes de Fortaleza entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Era do chamado grupo dos Oiteiros, membros da elite local que se reuniam no palácio do então governador do Ceará, Manuel Inácio Sampaio.

Sunday, September 03, 2006

Temístocles Machado

Borrasca

Fora, torcendo as árvores, gargalha
A tempestade em rugidora festa;
Como o rude estridor de uma batalha,
Ruige o trovão nas comas na floresta.

A treva desenrola-se funesta
Nos ermos,como lúgubre mortalha;
A luz relampejante as flores cresta
E o ventoas grandes árvores esgalha.

Aterradora indômita, selvagem,
Tudo arrasta na hórrida passagem
A potência ciclópica das ventas.

E eu, triste e só, pergunto à noite escura:
Será maior que a minha desventura
A fúria colossal dos elementos?


IRONIA DAS FLORES
I

Foi na deserta e flórida avenida,
De um sol de Maio rútilo doirada,
Que me disseste o adeus da despedida
Convulsamente em lágrimas banhada.

Repetias chrando em voz magoadas
"Hei de amar-te por toda a minha vinha".
Tinhas sobre o meu peito a delicada
Fronte, n'esse desânimo, pendida.

Os passarinhos pelos arvoredos,
Ouvindo as doces notas que soltavas,
Souberam nossos íntimos segredos.

As brisas pelas árvores gemiam...
E na alameda, enquanto tu choravas,
Como eterno contraste as flores riam.

II

Depois de larga ausência dolorosa,
Através de desertos e de espinhos,
Volvi à terra onde deixei-te ansiosa,
Oh! visão dos meus íntimos carinhos!

Pela triste avenida silenciosa
Cantavam tristemente os passarinhos
Aquela endecha trêmelula e queixosa
Que tu, leviana, confiaste aos ninhos.

Rindo, a outra dizias, no entretanto,
Essa história de amor, hoje desfeito,
Que juraste a meus pés banhada em pranto.

As brisas pelas árvores cantavam...
Enquanto tu sorrias satisfeita
Como que as flores nos vergéis choravam.

Consolatio Miseris...

Eu escrevo versos para os desgraçados,
Falando aos corações dos infelizes,
Peas garras do tédio lacerados,
Sangrando como rubras cicatrizes.

Talvez no leito vil das meretrizes,
Na masmorra onde gemem condenados,
Possam cortar as sôfregas raízes
De cancerosos tédios ignorados.

Eu canto para alívio dos que choram,
Para os que, como eu , de joelho, imploram
Na treva a luz bendita de um carinho.

Canto para espancar as mágoas; canto
Para enxugar ao som do verso o pranto
Que vejo derramado em meu caminho!


TESMÍTOCLES MACHADO (25 de agosto de 1874 - 5 de agosto de 1921)
Nascido em Limoeiro, participou ativamente da vida intelectual cearense do fim do século XIX, na Padaria Espiritual (com o pseudônimo Túlio Guanabara) e no Centro Literário. Advogado e jornalista, viveu também no Rio de Janeiro e no Amazonas. Publicou Mirtos (1897), prefaciado por Valentim Magalhães (da Academia Brasileira de Letras), A Fileteida (1898), A Esmola (1900), O Maldito (1901), Pela República (1902), Invocação de Vítima (1904), além de um romance e um livro de biografias incompletos. É trisavô do autor desta página.

Saturday, September 02, 2006

Beni Carvalho

O Flamboyant

Forte, esgalhado, heril, o flamboyant, de flores
Rubras, na antiga fronde, ostentava a vitória
Da púrpura triunfal, na opulência da glória
Do sol, no alto do Azul, todo em chama e fulgores.

Lutou. Venceu heróico! A conquista, na história
Vegetal, alcançou n o meio de esplendores:
- Ora, altivo, pompeando à luz as rubras cores;
- Ora, verde, a cantar a Esperança ilusória!

Hoje, porém, descansa o flamboyant por terra,
Sangrente a floração, circundando-o, morrendo,
à agonia mortal, que o seu martírio encerra:

- Egrégio lutador que, na refrega, exangue,
Fulminado, semelha, a cair, combatendo,
Um cadáver de herói, salpintado de sangue!


BENEDITO (BENI) AUGUSTO CARVALHO DOS SANTOS (1886-1959)
Nascido em Aracati, bacharelou-se na Faculdade de Direito do Recife em 1911, tendo sido, professor da Faculdade de Direito do Ceará. No Exército, atingiu o posto de general. Foi vice-presidente, Deputado Federal e Interventor Federal no Ceará (1945-1946). Publicou Causas Dirimentes e Flagrante Delito (1917), Na Casa de Tiradentes (1931), De Flore e Luvas (1935), Sexualidade Anômala no Direito Criminal (1937), Chama Extinta (1937, seu único de poesias), Ação Parlamentar (1950), Crimes Contra a Religião, os Costumes e a Família.

Carlyle Martins

As Lágrimas do Angico

Faz anos que nasceu, em terrenos adustos,
Aquele pé de angico, esbelto e senhoril,
No amplo seio da mata, entre frágeis arbustos,
Tendo em cima o esplendor do vasto céu de anil.

À hora do entardecer, de temores e sustos,
Na tristeza de agosto ou na glória de abril,
Chora o tronco do angico, entre os troncos vetustos,
Alongando no espaço o alto e estranho perfil.

Espalham-se em redor as sombras vespertinas!
O angico, derramando o pranto das resinas,
Fica esperando a luz magnífica do luar.

- Como tu, vive alguém, no deserto da vida,
Procurandoo do amor a miragem perdida,
Ó velho angico ansioso e exausto de chorar.


CARLYLE DE FIGUEIREDO MARTINS (1899-1986)
Natural de Fortaleza, foi um dos poetas mais profílicos de sua época, tendo publicado, dentre muitos outros trabalhos, Evangelho do Sonho (1931), Caminho Deserto (1934), Colheita de Rosas (1938), Ânfora de Estrelas (1940), Paisagens do meu Destino (1957), Sinfonia do Entardecer (1966), Pássaro Errado (1968) e Mensagem das Horas Tardias (1972). É considerado o último "parnasiano histórico" do Ceará.

Antônio Furtado

A Colméia

Sob a umbela e o frescor de armo bosque olvidado,
Num recanto de selva, entre lírios e glastos,
Havia um tronco ancião, desnudo, abandonado
Gigante, ergendo no ar os fortes membros vastos.

Nele - negro espinheiro, anoso, esburacado,
Gazil, veio poisar, entre os vermes nefastos,
Um enxame de abelha. E, no cerne esvurmado,
Um cortiço se ergueu sobre os tecidos gastos.

Um rude lenhador, que ali passou, um dia,
O tronco derribou, vibrando a acha que fulge,
E o claro mel colheu, dentre a cera sombria.

E, em troca, a áurea colméia, em bando inquieto e loiro,
Cercando o lenhador, brilha, zumbe, refulge,
E envolve-lhe a cabeça em uma auréola de oiro.



ANTÔNIO FURTADO BEZERRA DE MENEZES (1893-1939)
Natural de Quixeramobim, publicou apenas História Azul (1921). Foi poeta marcadamente parnasiano.

Mário Linhares

A Seca

Ceará. Pleno sertão. Agosto. Um sol de brasa
Queima impiedosmanete o ventre da floresta.
O ar, pesado, asfixia. O espaço nem uma asa
De ave corta. A adustão flores e frutos cresta.

Fuzila o dia. Em fúria, o vento, dentre a fresta
De abertas rochas, silva. À sede que o abrasa,
O touro escarva o chão e ao mormaço da sesta,
A dor da planta à dor dos pássaros se casa.

Nenhum riacho a colear o amplo seio do bosque.
É ardente o slo, é murcho o arbusto, é triste o prado;
E nenhuma hera ao tronco anoso há que se enrosque.

Calma. Pela esplanada apenas se ouve o pio
Dos anuns e o mugir convulsivo do gado,
Sob a cáustica luz desses dias de estio.


MÁRIO RÔMULO LINHARES (1889-1965)
Nascido em Fortaleza, cultivou a poesia parnasiana durante a maior parte de sua vida. Entre seus livros, destacam-se Florões (1912), Evangelho Pagão (1917), Poesias (1937), Ascensão (1953) e Contas Sem Fio (1961).

Friday, September 01, 2006

Júlio Maciel

Jacarecanga

Rebelde e forte, aqui, outrora se implantava
A taba indiana - aqui, onde a alma lua cheia,
Pródiga, a derramar em cachões a luz flava,
- Agora a estes casais a fachada clareia.

Quanta vez trom de inúbia, entrechocar de clava
Não vibrou pelo azul que sobre mim se arqueia!
Praia! o tropel da tribo em correria brava
Quanta vez não sentiste a sacudir-te a areia!

E embora tu, Passado, a lenda antiga escondas,
Eu sei que o amor também floriu aqui: - no treno
Da aragem, no marulho eloqüente das ondas, -

Parece-me inda escuto, em meio à noite clara,
- O selvagem rumor dos beijos de Moreno
E as falas de paixão da meiga Tabajara!


Os Grous

Por sobre a serra e o vale, a tribo aventureira
Dos grous em fuga passa a pleno firmamento,
- Libérrima e veloz, em compacta fileira,
Alto, a pompear ao sol o plumacho opulento.

Súbito, o vale e a serra atroa arma traiçoeira,
E, qual se a elas movera humano entendimento,
Eis as aves sustém infeliz companheira,
Que no ar rodou, fechado o remígio sangrento!

E enquanto um caçador, a carabina em pouso,
Faiscantes, presos no ar, os olhos como brasas,
A sua opima caça, abaixo, aguarda, ansioso,

Alto, a pompear ao sol, lá vão os grous em bando,
Irmanados lá vão! nas protetoras asas,
Espaço acima - o grou moribundo levando!


JÚLIO BARBOSA MACIEL (1888-1967)
Nascido em Baturité, cursou Direito na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro. Em 1925, participou da eleição do jornal O Povo para escolher o primeiro Príncipe dos Poetas Cearenses, mas foi derrotado pelo Pe. Antônio Tomás. Publicou Terra Mártir (1918) e Poemas da Solidão (1943). Em Poemas Reunidos, de 1986, toda a sua obra foi republicada. Morreu em Fortaleza.

Carlos Gondim

As Ondas

Rolando as algas e lambendo as fragas,
Passam as ondas, céleres e frias,
- Formas nervosas de Nereidas vagas,
Esculturas de espumas fugidias.

Ora em coréias, como estranhas magas,
Recamadas de argênteas pedrarias,
Entoando ritos e cuspindo pragas,
Chegam para o sabbat das ardentias.

E, cheias de ânseias, cheias de desejos,
Ora, como serpentes enlaçadas,
Germem suspiros e soluçam beijos...

E, loucas, retorcendo-se na areia,
Como outras tantas Heros desgrenhadas,
Morrem, na praia, que o luar prateia.


As Cimbúlias

Irrequietas, à flor das ondas, em cardumes,
Ora róseas, abrindo as asas, ora azúleas,
Vogam na espuma argêntea, em seus radiosos lumes,
Como efêmeros sóis, errantes, as Cimbúlias.

Centenares, ao léu das vaga, em cerúleas
Conchas, de burgalhões e remotas negrumes
Surgem, bailando ao som de misteriosas dúlias,
Haurindo à equórea planta os estranhos perfumes.

Loucas, no amplo lençol das águas espumantes,
Brincam: - e é todo o mar refúlgida Golconda
De topázios, rubis, safiras e diamantes...

E, volúveis, ruflando as asas sobre as vagas,
Em farândola ideal, elas vão de onde em onda:
- Borboletas do oceano, adormecer nas fragas.


CARLOS GONDIM (1886-1930)
Nascido em Aratuba, foi um "boêmio incorrigível", nas palavras de Sânzio de Azevedo, chegando a envolver-se no mundo crime e a ser cumprir vários anos de prisão. No cárcero, leu e escreveu bastante. Foi assassinado, e o crime jamais esclarecido. Publicou Ode Republicana (1915), A Tortura do Artista (1915), Poemas do Cárcere (1923) e Ânsia Revel (1929).

Thursday, August 31, 2006

Américo Facó

Os Sátiros

De corpos nus, por entre a espessa mata, o bando
Dos Sátiros se interna em constante procura:
Ora um se adianta, além, na intrincada espessura,
E ora outro mais se afasta - olhos fitos, buscando...

Esse, que tem no lábio o rubescente e brando
E esplêndido frescor de uma fruta madura,
Abre o lábio a sorrir.. Vendo aquele a frescura
De uma corrente, bebe a água que vai rolando...

Soa ao longe um rumor! O ardente bando, à espreita,
Aquieta-se. E por fim, loiras, nuas, aflantes,
VÊm as Ninfas, a rir, descuidosas, sem vê-los...

E os Sátiros, que à sombra esperavam na estreita
Passagem, de repente erguem-se - e os mais amantes
As prendem, lhes cingindo a cintura e os cabelos...


Ilusão do Inverno

Sonho o inverno - eis o inverno: eis a chuva que chega!
E a terra eis como um ser que ressucita! o orgulho
Da vida corre após do carvalho ao tortulho.
O aguaceiro de abril vales e campos rega.

E a flor! E o fruto! E o aroma! - Aves, no doce arrulho
- Um Desejo que busca e um Pudor que se entrega -
Vão a fugir, casal na amorosa refrega.
Aos regatos ouvindo o constante marulho.

A sementeira farta abrolhando no rudo
Paul da terra é tão rica e tão boa! A setembro
Hemos tê-la sem par... - Mas o torpor sacudo:

Ilusão! Que é ilusão isso tudo, me lembro!
- A terra, estéril jaz sem produzir - e em tudo
O implacável calor deste sol de novembro!...


AMÉRICO DE QUEIROZ FACÓ (1885-1953)
Nasceu em Beberibe, transferindo-se, em 1910, para o Rio de Janeiro. Publicou poemas em vários períodicos de seu tempo, como no Jornal do Ceará e no Álbum Imperial, de São Paulo. Em 1951, renegando tudo o que produzira no Ceará, publicou Poesia Perdida.

Cruz Filho

A Canção da Cigarra

E a velhice aí vem. Vem com os seus frios
Com o seu tristonho, o seu brumoso inverno,
E os céus, que eram azuis, ficam sombrios,
Desfaz-se o tempo que eu supunha eterno!

Flavos dias de sol, quentes estios,
Brando enlevo romântico e superno,
Que eu cantando passei - ei-los vazios,
Meus castelos de Sonho - ao vir do inverno!

Consumi, na loucura mais bizarra,
Chamando embalde uma perpétua ausente,
minha existência inútil de cigarra!

Paixão maldita! Desvairado anseio
Da cigarra, que invoca, inutilmente,
A doce companheira não veio!


A Ilusão do Sapo

Aos pinchos, pela sombra, indolente e moroso,
O batráquio estacou do fundo poço à borda,
E um momento quedou, como quem se recorda,
Surpreso ante a visão do poço silencioso.

Ao fundo, onde do céu, que de nuvens se borda,
Reflexa a imagem vê - pelo céu luminoso
Vê da Lua pairar o áureo disco radioso:
E o disforme animal de júbilo transborda...

Um momento quedou, mudo e perplexo. Ao centro,
A tentá-lo, a ilusão do astro de ouro flutua,
E o monstro eis que se arroja, a súbitas, dá dentro...

E a água convulsionou-se em círculos ondeantes,
num naufrágio de luz, em que perece a Lua,
dissolvida em rubis, topázios e diamantes.


JOSÉ DA CRUZ FILHO (1884-1974)
Nasceu em Canindé, Ceará, saiu de lá somente aos trinta e quatro anos, vindo a publicar, aos quarenta, seu primeiro livro, Poemas dos Belos Dias (1924). São seus, ainda, Poesia (1949) e Toda a Musa (1965). Eleito, em 1963, Príncipe dos Poetas Cearenses, tendo sido o segundo a receber esta láurea.

Alf. Castro

Morte de Pã

Estendido no chão, no mais denso e profundo
Do bosque, dorme Pã. Dorme e fala. Delira.
Deixai-o descansar, que o deus é moribundo.
Vede-lhe a avena ali: por seu sopro suspira.

Mas encontram-no, acaso, as ninfas. Sobre o imundo
Fauno, que as perseguia, elas todas, em ira,
Com chufas e bastões lançam-se agora, a fundo,
Até que o deus, gemendo e soluçando, expira.

Então, uma, sem dó, os chavelhos lhe arranca;
Outra os olhos lhe espeta; outra lhe rasga a boca;
Outra, com a própria avena, o pé de cabra lhe espanca.

Depois, dando-se as mãos, ébrias do mesmo gozo,
O bosque inteiro atroando, em grita imensa e louca,
Dançam em derredor do sátiro asqueroso.

Cena Marinha

Nadando, acaso, sobre a emaranhada tela
Das algas, dos corais, dos pólipos gigantes,
Um tritão encontrou uma jovem sereia
Divagando, a cismar cismas de almas amantes.

Logo, o monstro marinho, inflamando-se, anseia
Por abraçá-la e tê-la. Ela o sente. Mas, antes
Desejando morrer, foge do monstro, cheia
Do mais justo pavor dos seus olhos chispantes.

Sobe. Apressa-se mais. Chega, por fim, à tona
Das águas. O tritão chega também. Desata,
Após ela, a correr - mais e mais a ambicina.

E, na porfia, os dois, em disparada, às soltas,
Voam. Na flor do mar há fulgores de prata
E um contínuo chofrar de águas e águas revoltas.


ALFREDO DE MIRANDA CASTRO (1873-1926)
Nascido em Pernambuco, foi o principal poeta do Parnasianismo, no sentido francês do termo, no Ceará. Em vida, publicou apenas De Sonho em Sonho (1906), já aqui em Fortaleza. A Universidade Federal do Ceará, em 1999, publicou o seu livro inédito Ocaso em Fogo.

Saturday, December 17, 2005

Francisco Carvalho


Tangedor de camelos

Árabe, tangedor de camelos
íntimo do deserto
e das areias
tocava lentamente as caravanas
guiado pelo odor da água
a setenta léguas
de algum oásis sonhado
pelos beduínos
e também pelo cheiro de sândalo
dos seios das dançarinas
ao luar dos gumes das adagas.

Lavoura

As minhas mãos
já foram robustas
já plantaram
sementes de milho
nas terras dos filisteus
hoje só semeiam
as lavouras do adeus.

Poema para escrever no asfalto

Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração
e o quanto sobra do naufrágio
das nossas utopias.
Agora eu sei o que significa a fala dos mortos
e esta parábola soterrada
que jorra das veias da pedra.
Agora eu sei o quanto custa o ouro das palavras
e este pacto de sangue
com as metáforas do tempo.
Agora eu sei o que se passa no coração de treva
e do homem que morre mendigando
a própria liberdade.
Agora eu sei que o pão da terra nunca foi repartido
com a nossa pobreza
e com a solidão de ninguém.
Agora eu sei que é preciso agarrar a vida
como se fosse a última dádiva
colocada em nossas mãos.

FRANCISCO CARVALHO (1927)
É, essencialmente, poeta. Autor de dezenas de livros do gênero, dentre os quais se destacam Canção Atrás da Esfinge (1956), Do Girassol e da Nuvem (1960), O Tempo e os Amantes (1966), Dimensão das Coisas (1967), Memorial de Orfeu (1969), Os Mortos Azuis (1971), Pastoral dos Dias Maduros (1977), As Verdes Léguas (1979), Rosa dos Eventos (1982), Quadrante Solar (1983) - Prêmio Nestlé de Literatura, As Visões do Corpo (1984), Barca dos Sentidos (1989), Rosa Geométrica (1990), Exercícios de Literatura (1990), O Tecedor e sua Trama (1992), Crônica das Raízes (1992), Flauta de Barro (1993), Galope de Pégaso (1994), Soanta dos Punhais (1994), Artefatos de Areia (1995), Textos e Contextos (1995), Rosa dos Minutos (1996), Raízes da Voz (1996), Os Exílios do Homem (1997). Membro da Academia Cearense de Letras.

Monday, December 12, 2005

Dimas Macedo


Crônica

Fortaleza de noite:
eis todo um argumento
para viver a vida
plena de sentimento.
Deslizo pelas ruas
sorvendo antiga brisa.
No rio do asfalto
a noite se eterniza.
Fortaleza tem corpo
e atração fatal
que sangra nossos olhos
com lâmina de punhal.
Sou todo fortaleza,
penumbra e nostalgia.
Existo enquanto sonho
sua geografia.
Em noites de insônia
Fortaleza é assim:
é casa do espírito,
é princípio e é fim.

Formas

A lua e as estrelas,
o sol e os alabastros,
as cicatrizes de Deus
e as mulheres nuas
são formas puras do amor
que reconheço,
são como cactos
que me ferem os olhos
na distância,
tais os mistérios densos,
as perdas preciosas,
a dor de não viver a vida
presa na garganta.

Subitamente

Subitamente
é preciso que os relógios parem,
porque tudo será pedra sobre pedra,
e tudo.
Não mais restarão
as tuas mãos que necessito,
as tuas palavras sem gestos
que eu procuro...
não mais restará o teu silêncio
que o meu silêncio pede,
pois as armas e os brasões
hão de florir por sobre a infância,
e tudo será rocha.

Ânsia

Os sentidos da vida
que me chegam.
Os sentidos da vida no momento.
Porque no centro da alma
há um castelono qual escuto
as confissões do vento.
E bem no fundo da alma
há uma tela muito mais bela
ou igual à minha ânsia,
porem a ânsia que sinto
é um conflito
muito maior
que a nave da existência.

DIMAS MACEDO (1956)
Poeta, crítico literário e jurista, é professor do Faculdade de Direito de UFC. Outor de, dentre outros, A Distância de Todas as Coisas (1980), Lavoura Úmida (1990), Estrela de Pedra (1994) e Liturgia do Caos (1996), poesia; Literatura e Conjuntura (1984), A Metáfora do Sol (1989) e Crítica Imperfeita (2001), crítica literária. Membro da Academia Cearense de Letras.

Carlos Augusto Viana


Os Corredores da Memória


1
quantos roçados de pranto
regados

prosseguem
no rosto
sobreviventes raizes

soturnos
percorremos
os silentes corredores da memória

2
cal e sofrimento
recompõem
o território em ruinas

no tecido da linguagem
estampam-se
palavras e paisagens

3
serpenteia-se
a procissão
dos mortos

não trazem
chamas
cânticos ou incensos:

apenas
anunciação

Cantiga de Desconsolo

Meu pai
incrustou domicílio
no Cemitério do Pecém:
tanto
para adormecer melhor
sob o sussurro das marés,
quanto
para perscrutar,
mesmo em pó,
a fragmentação de asas
e a explosão dos açúcares.

Eu mesmo o acompanhei até lá:
os cílios em dor.
(Amparava-me uma das alças de seu caixão.)
E desde aquele crepúsculo
de cinzas e interjeições dolorosas,
nunca mais o visitei.
Para quê?
Se não mais poderá tocar-me o ombro:
- Filho!

A Báscula do Desejo

1
O mar inventa canteiros nos cílios das areias,
multiplica-se no marulhar do ar nos grãos de milho
move-se em murmúrios nas conchas múltiplas do alpendre.
Estilhaços da chuva na memória:
um mapa embrulhado nas pálpebras,
um cavalo singrando o arco-íris,
um girassol se contorcendo num jarro.
2
Teus peitos em chamas cobrem de espumas as ilhas,
as franjas do vento inauguram temporais.
Teu corpo se derrama, enorme, sobre as dunas
que a mão dos vendavais tece no litoral de novembro.

O amor são as patas do cavalo
sobre os espelhos das campinas,
o sol incendiando a penugem do canavial,
o mapa dos olhos no escuro,
uma cidade que se despe como um calendário.

O amor é um roçado de enigmas,
claros como o silêncio dos retratos,
iniludíveis como o olhar dos bois,
ávidos
como as mãos que cavam a terra
ou os pés que namoram caminhos.

Amar é escrever teu nome
no ventre de uma inacessível praia
onde adormecem um deus e as cordas de uma guitarra.
Amar é escrever teu nome
como se escreve um poema sem palavras,
assim como a noite se inscreve na solidão de um homem.

3
O amor
se
pétalas
empre
exala

por isso
amar
não conserva arames
em suas léguas

4
De teus olhos em água
saltam inscrições em fogo,
assim como existe um outro mar
que se desdobra além das ondas,
um calendário nas sombras
que se diluem nas paredes.

De teus olhos em água,
as inscrições em fogo
tingem de nova cor a paisagem
e dão às horas o enigma dos minerais.

Das inscrições em fogo,
o amor e sua linguagem de água,
o amor e suas sombras nas areias da memória.
O amor
e a escritura de seu abandono,
as tenebrosas buscas, as urtigas da dúvida,
o trigo interrompido, o gesto não pendoado,
o grão das horas a arder sob o sol das esperas.
O amor
e suas mãos que palmilham palavras,
o inatingível, o inumerável,
o que não se conhece, o que não se aprende jamais.

Soneto com mel e porcelana

Tens os olhos mais belos desta aldeia,
a pele da manhã inaugural;
a voz derrama harpas e incendeia
as flores que se encrespam no trigal.
Se um rio de teus passos se alteia,
guitarras enlouquecem no varal;
o sol perde o seu lume; o grão da ceia
se espalha sobre a mesa, musical.
O teu corpo é de um barro alucinado,
fruto de finas águas; e os tecidos
que o cobrem têm um âmbar cultivado
por dedos de farândulas tingidos.
Melodias azuis, mel derramado
na cega porcelana dos ouvidos.

CARLOS AUGUSTO VIANA (1955)
Jornalista do Diário do Nordeste e professor dos colégios 7 de Setembro, Batista, Geo e Master e da UECE. Autor dos livros Primavera Empalhada, Inscrições dos Lábios (2002) e a Báscula do Desejo (2005), este vencedor do Prêmio Osmundo Pontes em 2003, todos de poesia, além do ensaio Drummond: A insone arqitetura (2004). Membro da Academia Cearense de Letras.